O segredo do chef
— Mesa 15, sobremesas: um creme brûlée e um petit gâteau! Mesa 18, dois bifes Bourguignon! Muito bem! Sobremesas da mesa 10 entregues! Zé Paulo, arruma aqui esse prato da mesa 3, coloca aí as folhinhas de manjericão que estão faltando e limpe o excesso de molho! Manda pra mesa, rápido!
Eram as últimas mesas da noite no restaurante La Noirriture. O Chef Jean Dubois ainda deveria aparecer no salão para estes últimos grupos de clientes, sorrir e disfarçar o enorme cansaço. Um cozinheiro faltou sem avisar e o Zé Paulo, moleirão, querendo ser demitido, não ajudava. Ao contrário, atrapalhava. Administrar a confusão da cozinha, fazer tudo acontecer com pontualidade, no prazo esperado e ainda sorrir para clientes que chegam à última hora, não seria tarefa fácil.
— Mas vamos lá – pensou Chef Jean – a noite ainda será longa.
Longa noite porque depois de fechar o restaurante, ainda deveria fazer uma breve inspeção na cozinha, contabilizar os desperdícios, separar o que podia servir para alimentar os moradores de rua. Todas as madrugadas, Jean levava restos das panelas em marmitex para meia dúzia de sem teto que “moravam” na avenida de baixo. Não suportava desperdiçar comida, ainda mais aquela comida, pela qual alguns pagavam caríssimo, enquanto havia gente com fome. Antes, ajudava apenas um homem, um senhor de mais idade. Agora o ponto já estava incrementado por mais três mulheres, uma criança de uns seis anos e um moleque grande, com pinta de malandro. Levava para eles o que sobrava e deixava que dividissem entre si. O primeiro homem já havia até engordado...
Jean era um chef premiado. Começou a carreira com um cursinho no SENAC, por pura falta de opção. Pressionado pelos pais para arranjar alguma coisa para fazer (afinal não queriam um vagabundo em casa) e encurralado com uma cartela de cursos do SENAC e outra do SENAI, optou pelo curso de gastronomia no SENAC, parecia o mais fácil. Pelo menos, não teria que fazer força, nem se sujar de graxa.
Rapidamente Jean compreendeu a alquimia do ato de cozinhar. Tudo química e uma dose de sorte. Sorte essa que veio acompanhada com uma bolsa de estudos para um curso superior de Gastronomia, conseguida após vencer um concurso em que participou só por insistência de um professor.
Durante a faculdade, numa das Jornadas Gastronômicas promovidas pelos formandos de cada ano, lhe pediram para fazer um prato regional e ele fez um baião de dois simples, mas cozinhou o feijão antes com bacon, reduziu a quantidade de coentro normalmente usada no prato, cozinhou tudo numa mistura de manteiga de garrafa com azeite e completou os temperos com louro em pó e uma páprica que ele mesmo fizera a partir de uns pimentões quase podres que tinha em casa. Enfeitou o prato com uma folhinha de coentro e pétalas de cebola caramelada. Foi com esse prato de destaque numa Jornada Gastronômica que Jean descobriu que o início do processo de putrefação melhora o sabor.
Com essa descoberta, começou a testar diferentes graus de putrefação de vários alimentos, especialmente aqueles vegetais que poderiam ser base para alguns temperos. Seus temperos eram únicos e esse era o seu segredo de Chef, adquirido por acaso, num evento sem graça da faculdade. Jean passou a ganhar vários concursos, mérito de seus temperos especiais, e juntou algum dinheiro. Depois que terminasse a faculdade, seu único plano era viajar pelo mundo, sem fazer nada e comer o que bem quisesse.
No entanto, seus pais, orgulhosos, lhe presentearam com uma viagem para Paris, com o fim específico de fazer um estágio de seis meses com o Chef Bertrand Dubois, de quem adotou o sobrenome, como se esse fosse seu nome artístico ou seguidor de uma grande escola de culinária. Com o Chef Bertrand, aprimorou seu entendimento da alquimia culinária. Levou sua páprica e o molho de tomate “especiais” para o restaurante Bertrand, onde fez enorme sucesso. Depois que retornou do estágio, Jean vinha fornecendo páprica para Bertrand. Ganhava um bom dinheiro com isso e fazia a transferência da páprica por vias não muito regulares, pois dependendo do fiscal da vigilância sanitária, seu processo de produção poderia não passar nos rígidos controles da agência. Isso barateava muito o custo para o Bertrand: esse “contrabando” era bom para os dois.
Seus pais, sempre muito entusiasmados com o seu talento, investiram todas as suas economias e mais as de Jean naquele restaurante fino no Jardim Botânico, o La Noirriture. Adeus sonhos de viagens! Não adiantou o argumento de que deveria para conhecer in loco novos temperos, novos sabores. “Ah, hoje em dia com internet e com as facilidades de importação, você consegue tudo fácil, sem precisar sair de casa” foi o que Jean ouviu da mãe, resoluta e dominadora como uma domadora de leões. Além de não entender nada de comida ou de alquimia, entendia menos ainda dos exaustivos e caros processos de importação de alimentos.
E foi assim que suas economias para viagens e seus desejos gastronômicos foram empacados no restaurante. Do ponto de vista de mercado, empacado não seria uma palavra adequada – o restaurante era sucesso absoluto na zona sul carioca. Pela proximidade física que tinha com uma empresa importante do ramo de comunicações, o La Noirriture começou rapidamente a ser frequentado pelas mais diversas celebridades desse vão artístico e com elas vieram os fãs. Não raras noites havia reservas para todas as mesas, às vezes até três por mesa – o grau máximo de rotatividade. Mas Jean, depois de muito discutir com os pais, decidiu não aumentar o restaurante. Aumentou, sim, os preços de seu cardápio, que funcionou como a seleção natural da clientela. Isso tornou seu restaurante diferenciado, sem filas na porta, sua comida desejada e seu nome conhecido. Até já havia participado algumas vezes de programas de TV e ele próprio estava se tornando uma celebridade. Ou subcelebridade, já que no fundo ele era só um cozinheiro cheio de truques e malabarismos.
Na verdade, tudo isso o aborrecia. Ele nunca mais viajaria como realmente queria, afinal, não era mais um anônimo. Era o conhecido Chef Jean Dubois, que trabalhava como um jumento, mas a única coisa que ele queria era comer seu prato predileto, de uma simplicidade sem par. E como isso era difícil!
Todo dia ele fazia tudo sempre igual. Inspecionava a cozinha, os últimos pratos e panelas sujas ficavam para a faxineira no dia seguinte. Separava o que ainda servia e depois de deixar a marmita na avenida de baixo, seguia para sua casa – havia conseguido se divorciar dos pais há três anos, quando o restaurante se tornou o fenômeno do Jardim Botânico. Era um alívio ter sua própria casa e liberdade para suas criações culinárias, seus temperos e pratos “especiais”. Cultivava vários temperos em seu quintal para testes. Tinha câmaras especiais para putrefação; em alguns casos, aplicava hormônios vegetais para acelerar o processo. Ao chegar à fórmula ideal, comprava quilos de ingredientes e aumentava a escala para levar ao restaurante.
Naquela noite, do carro mesmo, Jean ligou para seu Personal Chef:
— Bozó! Hoje vou pedir diferente, pode ser?
— É só falar, chefe, que em 20 minutos está na sua porta.
— No lugar do X-egg, leva pra mim aquele X-tudo com dois ovos estrelados. Capricha no bacon, hein, amigão? Manda também um saco de fritas e um litro de Coca. Hoje o expediente foi duro, estou morrendo de fome e mereço a melhor comida do mundo!
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