ASSIM ME CONTARAM - PARTE III
Duas horas depois, capela quase vazia e as pessoas conversando no pátio da casa e no adro da igreja, chegou Bento. Era o único filho do casal, ainda jovem, estava com vinte anos e estudava numa cidade mais além. Viera o mais rápido possível, quase sem parar, junto com alguns amigos. Foi direto para o quarto da mãe. Deu um longo abraço e choraram juntos. Uma comovente cena. Antes, porém de ir ver o corpo, a mãe o fez tomar um banho e trocar-se. Ao sair da casa olhou para baixo, viu Bernardo no tronco, aproximou-se:
__ Você matou meu pai, escravo?
__ Não sinhô – as palavras quase já não lhe saíam.
Bento gostava de Bernardo. Brincaram juntos quando era criança e o escravo passeava com ele pelo rio. Ele não imaginava que o escravo tivesse feito aquilo. Bento era moço inteligente e se preparava para estudar em Lisboa. Não era agressivo como o pai que, inclusive o acusava de abolicionista.
__ Bernardo, espero que esteja certo. Eu não acredito que você faria isso. Vou falar com minha mãe. Mas você sabe quem foi não sabe?
__ Sei não, sinhô. Quando eu cheguei, ele já estava no chão, ainda vivo. Eu juro.
Bento subiu, reencontrou a mãe que o esperava e foram para a igreja.
__ Amanhã eu mato ele – disse Marília – negro imundo!
__ A senhora tem certeza minha mãe?
Ela silenciou-se.
Entraram, e ao ver o pai morto, Bento desabou num choro sofrido, contemplando sua face amarelada. Pensou nos dois anos que estava fora. Quanto tempo! Sua mente fluiu em longínquos sentimentos. Visitara o pai e a mãe várias vezes, mas nunca mais esteve de verdade a seu lado. Arrependia-se no fundo, embora amasse o pai e por ele fosse amado. Sentia-se incompleto, sentiu-se um pesar na alma. Deixara que divergências políticas os mantivessem a uma confortável distância. E meditou longamente diante do pai.
Saindo para respirar o ar da noite, Bento parou uns instantes no exato local onde o pai partira para eternidade. Viu ainda uma mancha, que às luzes das lamparinas pareceu ser de sangue. E olhou ao longe, ao lado da senzala, o escravo ao tronco, ajoelhado com as mãos amarradas acima da cabeça. Pensou no quanto desejou o fim da escravidão e convive agora com a cruel dúvida sobre o assassinato do pai. Ele amava o negro com quem sorriu e com quem ao longo da vida passeou pela margem do rio, caminhou pelas árvores do pomar, foi à cidade e sorriu com as histórias dele. Ele fora sua inspiração abolicionista. Agora estava lá, à morte, condenado por sua mãe como assassino do pai. É a vida.
Desde o “a senhora tem certeza mãe?” Marília guardava o silêncio. Na verdade ela não tinha certeza, ou talvez precisasse culpar alguém. E a culpa sempre cai naquele que não pode se defender ou não tem ninguém que o defenda.
Ana fazia as vezes da sinhá. Recebia ainda algumas pessoas que chegavam. E agora estava um pouco assustada. Percebia que as pessoas a olhavam com ar de suspeita, inclusive Bento, que conversou com ela sobre Bernardo e esta insistiu que ele era inocente. Ele desconfiava de Ana porque era tão convincente de saber que não era o escravo. Inteligente que era percebeu o risco que estava correndo e começou a ficar mais distante de todos. Os soldados às vezes a seguia discretamente. Marília continuava chorando ao lado do caixão, e seria assim por toda a noite. O filho, ora aparecia, ora ia ver os escravos, principalmente Bernardo, com quem insistia em revelar quem fizera tal coisa.
Na cozinha, Bento chegou e até sorriu, por um leve momento parecendo esquecer que o pai estava sendo velado.
__ Francisca! Que saudade desse cheiro bom!
__ Imagina – disse a escrava sem disfarçar a estranheza do seu sorriso e deixado cair, como que assustada, o copo que estava à sua mão – eu é que estava com saudade do meu Bentinho.
__ Que pena Francisca, que nosso reencontro nesse momento dolorido pra mim. Mas aqui, você acha que foi o Bernardo?
__ Sinhô, não sei de nada. Escravo não vê nada e diz menos ainda.
__ Mas Francisca, é meu pai!
__ Eu não sei de nada meu filho. Eu estava na cozinha, limpando tudo quando Ana chegou e me contou. Eu não ouvi os gritos da sinhá sua mãe, nem de ninguém. Eu só vi que o Bernardo passou aqui à frente da janela, disse que ia cortar o mato. Depois não vi mais.
__ Viu onde Ana estava?
__ Não sinhô. Eu estava aqui na cozinha desde cedinho. A Ana não passou por aqui. Escutei ela e sua mãe conversando na escadaria e indo pro quintal. Mas eu não prestei atenção na conversa não.
__ Tudo bem. Vim aqui mesmo foi pra lhe dar um abraço. A noite ainda vai ser longa. Vou voltar pra igreja e ficar junto de minha mãe. Vou ver se ela sai de lá um pouco para descansar. Até mais tarde.
Quando saía de volta para a igreja, ouviu-se um burburinho. Era a escrava Conceição, que chorava ao lado de Bernardo e dizia que era injustiça, clamando vingança de Deus, e que Bernardo não ia ver a luz do dia. E estranhou a aproximação de Ana que lhe fez calar.