O caso de Josué

Josué era um xereta profissional. Investigador da vida alheia. Um detetive particular.

Gastava tanto tempo observando e fotografando a vida dos outros que terminava deixando a própria de lado. Seus horários eram os piores possíveis. Em geral a hora em que amantes se encontravam em motéis e apartamentos suburbanos, ou um empresário encontrava com um político para uma negociata. Mas o último caso era raro. Josué terminara mesmo trabalhando para maridos ciumentos e paranoicos e esposas traídas. Cinco anos disso e ele quase sentia falta do tempo em que era policial militar e vivia fugindo de bala e correndo atrás de malandro de favela em favela.

Ele se sentia mal por ter tão pouco tempo para a esposa. Tentava compensar dando de tudo o que podia para ela. Maquiagens, assinaturas de revistas, carro, telefone e até um maldito de um computador que lhe custara uma fortuna.

Isso, até que um dia, percebeu um rapaz com toda a cara de malandro espiando na frente de sua casa. Inicialmente ele achou que era só mais um gatuno esperando uma oportunidade pra um furto fácil. Deu um beijo na mulher e saiu de casa como se nada tivesse acontecido. Entrou no Maverick preto, ganhou a rua, mas parou logo depois de dobrar a esquina.

Ficou olhando de longe para ver a reação do moleque.

Para seu espanto, ele tocou a campainha e foi recebido por sua esposa, que não demonstrava nenhuma surpresa. Entrou e não saiu antes que duas horas tivessem se passado.

Era uma porra! Josué, o funcionário do mês dos cornos de Recife, era um corno ele próprio.

Nos tempos de policial, ele havia perdido a cabeça algumas vezes e metido balaço em uns bandidos quase tão filhas da puta como o famado “Biu do olho verde”. Saíra da corporação de consciência pesada, jurando nunca mais meter uma bala em ninguém.

Josué se espantou com a calma que lhe tomara no momento. Talvez tenha sido anestesiado para traições de tanto observá-las. Mas é claro que ele ainda pensava em dar um jeito naquela situação. De todos os cornos o pior é o que não faz nada à respeito... o conformado.

Pois bem. Seguiu o “urso” à pé. Subiu no ônibus junto com ele. E tanta foi sua frieza, que sentou no assento logo atrás dele. Podia até sentir o cheiro de sua mulher na roupa do cabra.

O caso é que o rapaz morava em Santo Amaro. Num trecho que podia ser definido como uma “bocada”. Josué o acompanhou de longe e viu em que casa ele entrava.

Fora isso, seguiu sua vida normalmente. Até foi pra a cama com a mulher como se nada tivesse ocorrido. A bandida não percebera que ele sabia que era corno e até elogiou seu desempenho e lhe fez juras de amor. Josué pensou que podia ter seguido carreira como ator. Talvez um dia seguisse. Sua mãe sempre disse que ele tinha uma pinta de “Tarcísio Meira”.

Todo dia, “o galego”, como era conhecido o rapaz que estava pondo-lhe chifres, chegava a sua casa, geralmente depois do meio dia. De vez em quando até almoçava com a mulher. Sentado na ponta da mesa, como se fosse o dono do lugar.

Josué trepava na árvore da casa abandonada que ficava ao lado da sua e tirava fotos.

Pensou em se separar. Pegar as fotos, jogar na cara da mulher e se mandar.

Mas a esposa era filha de um coronel da polícia militar dos mais severos. Desde o começo, disse ao Sargento Josué, patente que tinha na época do casório, que não haveria desquite.

Melhor filha viúva do que separada, ele dizia.

Josué entendera o recado logo cedo.

Corneado ou não, o sogro não ia deixar ele vivo pra contar a história, caso se separasse. E mesmo que deixasse, ele seria ridicularizado, por que no Brasil, se ria do corno tanto quanto se criticava adúltera.

Sem saber o que fazer ainda, ele resolveu que pelo menos ia recolher evidências antes de confrontar a mulher.

O nome do urso era Carlos. Carlos Santos da Silva. Ou simplesmente ”Galego”. Tinha 19 anos, filho de um pedreiro e uma lavadeira. Gente de bem, pelo que tinha assuntado.

Mas o galego não saíra aos pais. Fazia bicos, pequenos furtos e jogava de lateral-esquerdo na divisão de base do Sport Club do Recife. Mas o que gostava mesmo era de samba, cachaça, sinuca e mulheres casadas.

Era até bem apessoado. O terror dos maridos de Santo Amaro. Tinha em torno de um metro e oitenta. Era magro, branco e tinha os olhos verdes e os cabelos aloirados. Não poupava ninguém do bairro, até que levou uma surra de um marido nervoso e começou a caçar em outras freguesias. E foi assim que o filho da puta veio-lhe bater na porta.

Josué passou um mês sendo Voyeur da própria esposa com um maloqueiro que mal tinha barba pra ser chamado de homem, mesmo que isso lhe revirasse o estômago. Foi então que teve a ideia. O tal do galego já tinha passagem pela polícia por furto. Ia ser fácil pegá-lo no flagra e mandá-lo pro Aníbal Bruno... o maior xadrez de Recife. Lá dentro, Josué tinha uns contatos com carcereiros e ia se assegurar que o rapaz levasse uma boa camada de pau até aprender a não mexer com a mulher dos outros.

Nesse ponto, ele estava cagando e andando pra a mulher e para o casamento. Estava de saco cheio daquela farsa. Mas pelo bem de seu senso de honra distorcido, Josué mantivera as aparências.

Ele sabia que podia embolachar a esposa, meter uma bala no galego e jogar no Capibaribe, que nem o sogro ia poder lhe censurar. O que acontecia dentro do casamento era assunto apenas do casal. Eram assim que as coisas ainda funcionavam nos anos 80.

Já era dezembro e Josué suava dentro de seu maverick, esperando o galego chegar para o encontro com sua esposa.

Ouvindo sem prestar muita atenção, uma rádio em que se anunciava que o Sport havia sido declarado campeão brasileiro após uma disputa de pênaltis com o Guarani e da recusa do Flamengo e do Internacional em jogar um quadrangular final. Naqueles dias, Josué não podia se preocupar menos com aquele resultado. Ainda mais sendo o urso um “rubro-negro”.

O galego chegara como de costume depois do meio dia. Dessa vez, nem tocou a campainha. Pelo jeito sua esposa tinha tirado uma cópia da chave para o malandro.

Josué conferiu seu 38 no coldre e desceu do carro. Esperou meia hora, para dar tempo de pegar os dois no flagra e o drama ser completo.

Entrou silenciosamente e foi direto para o quarto.

Lá dentro viu a esposa atracada com o rapaz. Tal era o fogo dos dois que não notaram que estavam sendo observados.

Josué foi caminhando calmamente e encostou o cano de seu revolver na nuca do galego.

- Sai de dentro da minha mulher por que eu não quero sujar meu lençol com teus miolos, filho da puta.

O garoto pulou de lado e a mulher tentou abafar um grito.

- Amor... não mata a gente... não mata.

A desgraçada pelo menos não veio com o clichê “não é isso que você está pensando”... Josué achou quase decente da parte dela.

- Não vou matar você, bandida. Já ele, eu não prometo muita coisa.

- Não me mata não... Eu juro que não volto mais... Disse o galego.

- E ai você vai sair espalhando que me corneou e eu te deixei vivo? Não, obrigado. Seu bosta! Disse Josué, fingindo uma raiva contida, e então apontou para a mulher com o revolver. – Se vista e entregue a roupa para o garanhão aqui. Nós vamos dar um passeio.

Tremendo, o galego respondeu.

- Não... não... tio... Me deixa ir. Eu nunca mais apareço por aqui. Eu vou embora de Recife.

- Não sou seu tio, seu pedaço de merda. Você não vai sair de Recife não. Você vai pra debaixo da terra!... A não ser que...

Interrompendo sua fala e sentando numa cadeira como se pensasse, Josué olhava fundo para os olhos verdes do galego.

- A não ser o quê, senhor? Eu aceito qualquer coisa... Só me deixa vivo.

-Bem, eu posso ligar pra a polícia e você assume que veio aqui roubar minha casa. Passa uns dois anos no xadrez e depois se manda da cidade. Se eu vir você por aqui, meto uma bala nos seus ovos. Ok?

- Sim senhor, eu confesso. Confesso sim! Nunca mais o senhor vai me ver.

- Então está feito.

Sem dizer mais nada, Josué pegou a extensão do telefone no quarto e discou para a polícia.

Em meia hora chegou um camburão e recolheu o galego.

Antes de sair para a delegacia com a mulher para prestar a queixa, Josué entregou-lhe um envelope com as fotos que tirou e disse.

- Confirma a história ou mando um desses pra cada um de seus parentes pra todo mundo saber quem é a vadia com quem me casei.

Sem dizer nada, a esposa balançou a cabeça afirmativamente e seguiu com o marido para a delegacia.

Lá chegando, prestou depoimento acusando o galego de tentativa de assalto e até conseguiu derramar uma ou duas lágrimas.

Josué se certificou com seus ex-colegas militares que o “urso” fosse passar um tempo na ala dos condenados pro crimes sexuais, ‘por engano’, antes de ser conduzido para a ala dos condenados por furto.

Tomando o caminho de casa sozinho, depois que mandara a mulher de táxi na frente, Josué quase sentiu que tinha sido cruel demais com o rapaz. Por fim, acalmou-se.

Antes enrabado do que morto, pensou.

Voltou para casa e viu que a mulher tinha arrumado as malas e ido embora. Havia um bilhete dizendo que ia passar uma semana na casa dos pais.

Melhor assim, pensou.

Dormiu sozinho na cama em que foi corneado por meses seguidos. Talvez tenha sido o sono mais tranquilo que teve em toda sua vida.

Acordou cedo, pegou o jornal na porta, fez um café e se sentou para ler.

O plano Bresser parecia que não ia realmente dar certo. A inflação ‘comia no centro’. 366% em 12 meses.

Deixando o jornal de lado, Josué concluiu, aliviado, que o presidente Sarney tinha problemas bem maiores que o dele.

Pelo menos seus chifres tinham parado de crescer...

Já a inflação... bem... essa não tinha jeito.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 10/09/2015
Reeditado em 10/09/2015
Código do texto: T5376987
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