Pechô e o boiadeiro

Pechô era uma moça de cabelos e olhos tão negros que as noites sem lua vinham se esconder neles. Sua beleza era sua fortuna e sua perdição.

Da janela da Casa Verde, ali na rua Santa Catarina, perto da casa da Guilhermina, ela olhava os buquês que caíam suavemente dos Ipês. Pensava nos beijos do boiadeiro da noite anterior. Pediu para Virgem de Caacupé trazê-lo de volta.

Ramiro era um homem talhado pela dureza das estradas poeirentas do sul do Mato-Grosso. O chapéu de abas largas, a guaiaca e as perneiras de couro sobre as calças eram parte da sua personalidade.

Enquanto o dono da boiada fazia negócios na cidade, ele bebia e dançava com as mulheres da Zona Velha. Ramiro, nesses dias de folga, não pensava em nada, queria apenas aproveitar o fato de não ter patrão, horário ou bezerros desgarrados para resgatar. Sabia como ninguém aproveitar aqueles dias.

Nessa pausa para a farra merecida, não costumava passar duas noites com a mesma mulher. Para não enrabichar, dizia.

Mas o peão não conseguia esquecer os cabelos negros e a pele branca daquela paraguaia. Se não fosse mulher da vida, se casaria com ela.

Contrariando sua máxima, decidiu voltar à Casa Verde e que a paraguaia seria novamente só sua, não deixaria que outro homem a beijasse ou tocasse a seda dos seus cabelos.

Quando entrou na Casa Verde, o som das esporas e do solado de suas botas anunciaram sua chegada. A altivez de sua presença não passaria despercebida pelas mulheres e frequentadores da casa.

Pechô sentiu uma alegria correr-lhe o corpo. Ele havia voltado. Talvez para levá-la na garupa de seu cavalo.

Antes de dançar a primeira polca, a linda paraguaia foi ao quarto acender uma vela para a Virgem de Caacupé. O rosto da santa ficou iluminado. Enquanto isso na sala as risadas e os copos giravam ao ritmo da harpa.

As gargalhadas de Ramiro preenchiam a sala. Logo seus companheiros chegariam para completar aquela noite, que para alguns seria eterna e para outros curta demais.

A paraguaia queria se entregar novamente para o boiadeiro Ramiro, dele ouvir que não a esquecera e que a levaria embora daquele lugar.

Era um sentimento novo e repentino. Tinha conhecido muitos homens desde que estava naquela vida. Homens bonitos, feios, educados, toscos, experientes e iniciantes. Mas nenhum havia alcançado o seu coração. Tudo se resolvia com a satisfação de um desejo efêmero. Agora era diferente, seu coração, sua pele e seus olhos pediam aquele homem.

Ramiro só pensava em dançar, beber e no fim da noite levar a paraguaia mais bonita que já existiu para dormir com ele e imaginar que ela era só sua.

Corações ávidos batiam por desejos diferentes naquela noite.

A dona do cabaré avisou à Pechô que ela iria atender à um cliente especial. Um fazendeiro rico de Cuiabá. Gonçalo, o fazendeiro cuiabano, não fazia conta de dinheiro quando gostava de uma mulher. Sua generosidade era conhecida nos bordéis de Aquidauana, Coxim, Ponta Porã e por onde passava negociando gado.

A fama da paraguaia que enlouquecia os homens fez com que o fazendeiro cuiabano ficasse na cidade por mais aquela noite. Fez questão de ir até à Casa Verde com o seu capataz e dois peões. Todos diziam que ela era a mulher mais bonita que já tinha passado por ali. A verdade é que ela era mais bonita do que o rico fazendeiro havia imaginado. Quando a viu não teve dúvida, se fosse preciso pagaria uma boiada inteira para tê-la naquela noite.

Já estava comprometida, não podia fazer sala para o fazendeiro. Ele podia escolher outra menina ou voltar na noite seguinte. A formosa paraguaia tentou, sem sucesso, argumentar com a velha cafetina.

A proprietária da Casa Verde não tolerava namorico de quenga em seu estabelecimento. Afinal suas meninas estavam ali para fazer a clientela gastar. Com sua autoridade de antiga alcoviteira ordenou que Pechô fosse sentar junto à mesa do fazendeiro.

Do outro lado da sala o boiadeiro viu quando a dona daqueles cabelos negros e compridos desfilou até a mesa de um homem gordo que fumava charuto. Sentiu como se uma boiada tivesse estourado dentro do peito ao vê-la sentar no colo de outro homem.

Ramiro disfarçou o seu ciúme e gritou que a próxima rodada de bebida para todos que estavam na casa era por sua conta e uma sequência de gritos e assobios se misturam ao som da harpa.

E a gritaria ainda ficou mais alucinada quando a dupla de músicos fronteiriços pontilhou ‘Mercedita’.

Um frenesi tomou conta dos presentes e alguns mais empolgados sacaram suas armas e pipocaram fogo para cima. Os novos furos no forro do teto apenas se juntaram aos antigos. Eram marcas de outras noites e de outros chamamés.

Ramiro procurou os olhos de Pechô, mas não os encontrou. A paraguaia dançava com o fazendeiro.

“Así nació nuestro querer,

con ilusión, con mucha fe.

Pero no sé por qué la flor

se marchitó y muriendo fue.”

O boiadeiro puxou pela cintura uma das meninas que estava em sua mesa, precisava dançar aquele chamamé que outrora não lhe dizia nada, mas que agora parecia tão dolorido. Não ia se enrabichar por nenhuma mulher, esse era o seu lema.

“Y amándola con loco amor,

así llegué a comprender,

lo que es sufrir, lo que es querer; porque le dí mi corazón.”

Mais uma rodada de bebidas para todos, desta vez por conta do fazendeiro Gonçalo. Ele não poderia deixar que um peãozinho de merda bancasse o rei do gado. Acompanhado da paraguaia mais bonita que já tinha visto, gritou que todos podiam beber por sua conta o resto da noite.

Piiiiiiiiibúúúúú!!! Mí patron tem dinheiro!!! Foi um piseiro só, seguida de mais buracos no teto da sala.

Pechô sentiu que seu destino estava selado naquela noite. Havia se enganado ao pensar que poderia levar o fazendeiro para o quarto, satisfazer seu desejo e logo despedir-se. Mas aquele homem de braços cabeludos e rosto suarento queria era dançar e se esfregar com ela ali no salão. A paraguaia, em vão, tentou leva-lo várias vezes para o quarto. Em todas as vezes ele respondia que era preciso calma, não estava com pressa. Tinha muita “plata” e tempo para gastar.

Depois de beber várias doses de vermute com gelo, sem qualquer explicação, a linda paraguaia levantou-se da mesa do fazendeiro e foi até onde estava Ramiro. O boiadeiro se espantou quando a bela mulher lhe disse que queria conversar a sós com ele. Disse ao boiadeiro para irem embora daquele lugar, pois sabia que ele também a queria.

E a dona da casa? E o fazendeiro? Ramiro titubeou.

A indecisão do boiadeiro foi tempo suficiente para que os dois peões de Gonçalo chegassem perto do casal. Com arma em punho, um dos homens alertou a Ramiro que não fizesse nada, enquanto o outro pegou a paraguaia pelos cabelos e a arrastou de volta até a mesa do patrão cuiabano.

Os músicos pararam de tocar e os que assistiam a cena pediam calma, pediam para que o homem abaixasse a arma. Com exceção das meninas que estavam na função, quase todos ali estavam armados, inclusive os músicos e a dona do cabaré.

Enquanto a velha cafetina pedia para que todos se acalmassem, as luzes se apagaram. Instantaneamente o breu foi cortado pelas línguas de fogo que saiam dos niquilados.

Foi um deus-nos-acuda!

Ouvia-se o som dos estampidos por todos os lados. Em meio aos gritos das mulheres e dos xingamentos dos homens, se escutava garrafas e copos se quebrando. Mesas eram arrastadas e cadeiras eram lançadas às cegas.

Aproveitando-se da confusão, o fazendeiro e seus peões fugiram por uma porta que ficava próxima da mesa onde estavam.

Quando a luz voltou, restavam poucas coisas inteiras no salão. Nem mesmo a harpa havia se salvado, estava toda cravejada de balas e não havia uma só corda que não estivesse arrebentada. Aos poucos os tiros foram cessando, parando de vez quando se percebeu que o fazendeiro e seu grupo tinham abandonado a peleja.

A dona do cabaré e os músicos, ainda de armas em punho, saíram de trás de um balcão e foram vistoriar se todos estavam bem e se alguma das meninas havia se ferido. O cenário na sala era de destruição total. Apesar do grande susto, aparentemente ninguém estava ferido, só alguns arranhões provocados pelas tentativas de se esconder embaixo de mesas ou de se arrastar no chão para se proteger das balas.

Os músicos, as meninas e os companheiros de Ramiro ainda estavam se recompondo do susto quando um rumor de conversas veio do lado de fora. Foram ver o que estava acontecendo e se depararam com Ramiro sendo escoltado por três soldados e pelo doutor Delegado. A ronda policial passava em frente à Casa Verde no momento em que o boiadeiro cometia o crime que o levaria a passar anos na cadeia, longe do estradão, do som do berrante e da imensidão dos campos e matas do sul do Mato Grosso.

Assim que a luz se apagou, o boiadeiro sacou o seu revólver, deitou no chão e se arrastou em direção à mesa onde estavam os seus desafetos. Quando percebeu que o fazendeiro fugia, foi a seu encalço. Na fuga, Gonçalo que era sedentário e pesado, ficou para trás, enquanto os seus peões corriam. Ramiro não deu chance para aquele desconhecido que o havia humilhado na frente de seus companheiros e da paraguaia. Cego de raiva, descarregou seu 44, fazendo tombar morto o fazendeiro Gonçalo.

Ainda atordoados pela confusão e pela prisão de Ramiro, os presentes viram Pechô surgir no salão gemendo por socorro. A paraguaia estava com a face coberta de sangue.

Naquela refrega no escuro, enquanto ainda era mantida presa pelos cabelos pelo fazendeiro cuiabano, sem saber de onde veio, sentiu queimar a carne de sua face, um tiro atravessou a sua boca, deixando aquele terrível gosto de ferro e carne queimada. A paraguaia desmaiou e foi arrastada pelo fazendeiro, que a usou de escudo, até a porta de saída.

O doutor Delegado colocou a moça e o boiadeiro na “Baratinha” e partiram em disparada rumo ao hospital. Prestado o socorro à paraguaia, os policiais seguiram com o criminoso para a delegacia.

Condenado à pena máxima pelo crime de paixão súbita, o boiadeiro não pode se enrabichar pela única mulher com a qual desejou repetir muitas noites de amor.

Dias depois a paraguaia saiu do hospital. Não quis voltar para a Casa Verde. Olhava-se no espelho e imaginava a grande cicatriz que aquele episódio ia deixar em seu rosto e na sua alma. Decidiu regressar para Concepción, onde abriria uma pequena pensão.

Na Zona Velha, quando alguém perguntava pela paraguaia mais linda que já existiu, a resposta era sempre a mesma.

- Pechô era uma moça de cabelos e olhos tão negros que as noites sem lua vinham se esconder neles. Sua beleza foi sua fortuna e sua perdição.

Gilberto Ricardi
Enviado por Gilberto Ricardi em 09/09/2015
Reeditado em 05/10/2015
Código do texto: T5376667
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.