ASSIM ME CONTARAM - PARTE II
Enquanto chegava o ocaso, amarelado por detrás do horizonte, a cena se dinamizava. Chegavam vizinhos e gentes da cidade. O padre Silveira descia do cavalo enquanto todos abaixavam as cabeças em sinal de respeito por aquele homem que retirava seu chapéu e vinha solenemente em sua preta batina.
__ Bença padre – diziam.
Ele permanecia em silêncio, apenas abençoando os presentes com gestos manuais. Adentrara na casa grande, logo após passar perto da sala onde o corpo era preparado e fazendo o sinal da cruz.
__ Eu vim assim que soube senhora Marília. O coronel era um amigo pra mim, e lamento tão grande perda.
E entre uma lágrima e outra enxugada com um lenço de algodão, Marília respondeu:
__ Eu sei padre – e chorando – mataram ele padre, mataram meu Junqueira. Covardia padre, pelas costas – e se perdia em lágrimas enquanto recebia o abraço solidário do padre.
Ao longe Ana observava tudo. Era também observada. Poucos acreditavam na culpa do escravo, embora igualmente todos soubessem do ódio que nutria pelo coronel.
__ Essa aí não me convence – disse uma senhora, vizinha, a uma outra.
__ Nem a mim comadre. Essa mulherzinha é intrigueira que só.
O barulho do rio, ao fundo da casa, correndo entre as pedras era o mais belo quadro que Francisca tinha a seus olhos. E ela já contava com a ajuda de Maria Isabel e Joana, duas escravas que também eram prendadas na cozinha e sempre auxiliavam a cozinheira da casa em dias de festa. Ana supervisionava tudo, a pedido de Marília. Verificava a cozinha, o preparo do corpo, recebia as visitas e tudo mais. Ela se sentia uma sinhá dando ordens.
__ Toma conta de tudo Ana – havia dito Marília entre soluços - Eu só quero ficar aqui na varanda, olhar o céu e conversar com os parentes que forem chegando.
Berto trouxe um porco em partes. Era para o jantar. Foi ajudando nos cortes e ouvindo Francisca.
__ Isabel, põe água ferver, por favor.
__ Já ponho, Francisca – e entre uma lenha, um assopro e outro no fogo comentava:
__ Por mim foi a Ana que matou o coronel. Ela nunca foi com a cara dele. E além do mais, acho que ele a ameaçava. Ela falava demais...
__ Fica calada escrava, a gente não fala – retrucou Joana – ninguém viu nada. Fica quieto antes que sobre pra gente.
E benzendo-se, Francisca:
__ Deus me livre gente, esquece esse assunto, isso é coisa de gente branca. Coitado do Bernardo devia era ter corrido de perto do morto. Agora tá lá pobre homem, no tronco. E ele é pessoa tão boa!
__ Mais alguma coisa? Perguntou Berto.
__ Não. Qualquer coisa eu te chamo. Fica de olho no Bernardo, dá comida pra ele homem de Deus.
Na sala dos fundos o corpo de Junqueira era colocado ao caixão e levado para a igreja, onde aconteceria o velório e o sepultamento, marcado para a tarde do dia seguinte. Minutos depois tocou-se o dobre de finados. Os familiares e amigos dirigiram-se ao templo, tendo pela frente a sinhá Marília, que chorava e soluçava, amparada por Ana. Era já noite adentro, o jantar quase pronto seria servido na varanda da casa grande, aos poucos. Seria uma longa noite. Ana estava com a incumbência de organizar tudo. Após o fúnebre caminho entre a casa e a igreja, Marília assentou-se ao lado do corpo e recebia cumprimentos enquanto piedosas senhoras rezavam o terço. Ana descera para a casa, organizar o jantar e recepcionar parentes que ainda estavam chegando.
__ Corre Isabel, esse arroz tem que ficar pronto depressa!
Era Francisca, sempre cuidadosa. O jantar era preparado com carinho, como sempre fizera. Separara, com zelo, a comida que seria servida à sinhá e aos parentes mais próximos na copa da casa.
__ Cadê a Ana? – perguntava Joana – já tá na hora de levar a comida!
Nisso chegou Berto e deu os comunicados. Sinhá não queria comer, mas Ana pediu que deixasse tudo arrumado para quando ela viesse descansar. E junto com elas, colocaram a comida na varanda. Havia mesas para várias pessoas, e já avisada de tudo, Ana trazia os presentes para se alimentarem.
Abaixo da casa, depois do pé de manga e para os lados onde a lua brilhava intensamente, Bernardo gemia no tronco. Seus colegas de senzala levaram-lhe água e comida. Ele não comia e negava o crime. Se não confessasse provavelmente morreria ali mesmo, talvez antes do sepultamento do coronel. Ana compadecia dele, o amava como pai. Mas, fazer o quê?
Na igreja o velório acontecia entre cantos e rezas. O padre celebraria missa de corpo presente antes do sepultamento marcado para as dezessete horas. Cochichos sobre quem teria praticado tal ato era o assunto da noite. Outros fazendeiros esbravejavam contra o escravo, dizendo que deveriam deixar que morresse no tronco, sem água e sem comida. No fundo temiam que acontecessem o mesmo com eles. As mulheres cochichavam de Ana.
__ Eu acho que ela tinha um caso com o coronel. Ela é muito bonita.
__ Mas porque então ela o mataria? Ela tem confiança de Marília.
__ Ora, pois está na cara! Se ela descobrisse, ela seria morta e castigada.
Dois alferes estavam no velório, do lado de fora para manter a segurança e investigar atitudes ou ouvir algo que pudesse revelar a natureza do assassinato.
__ Lima, eu não acredito que foi o escravo. O corte não foi profundo, não foi feito com força nas costas. O da veia sim, mas ela é superficial. Não parece ter sido por alguém que maneja bem um facão.
__ Ora José, mas quem seria? Ele estava lá perto, o facão era o que ele usava! Ele pode ter feito de propósito, pra pensar que não fosse ele. O coronel, pelo que fiquei sabendo havia mandado o feitor chama-lo logo cedo para uma conversa. Ele pode ter pensado que Junqueira ia castiga-lo ainda mais... Eu não sei.
__ Lima, veja bem. Numa fazenda tão grande como esta, um coronel usa de castigos e mão de ferro. Inimigos é o que não faltam. A roupa do Bernardo estava limpa. Não pode ter sido ele.
E levando a mão ao rosto completou:
__ Hum... Ele deve saber quem foi. Ele estava lá. Deve ter visto. Mesmo dizendo que chegou quando ele já estava caído ao chão, pode estar protegendo alguém.
__ Ana – exclamaram juntos os dois.
__ Ana – continuou Lima. Bernardo, pelo que já vimos tinha muita afeição por ela. Ela é filha de uma escrava que foi amada por ele.
__ Mas será José? Mas segundo Marília Ana estava com ela quando se deu o grito do escravo.
Nisso se aproximou o padre:
__ Boa noite soldados. Alguma novidade?
__ Não padre, ainda não. Estamos investigando, ouvindo as pessoas e os cochichos, mas nada ainda. Tudo recai sobre o escravo até o momento, mas não temos certeza de nada.
__ Eu não acredito que foi ele. Esse escravo é um bom homem. Não sei se teria coragem de matar alguém. Antes de vir pra cá, há dez anos, ele foi escravo na cidade, de um amigo meu. Sempre foi obediente e religioso. Mas, as coisas mudam não é.
Nisso Ana aproximou-se gentilmente e fez a mesma pergunta aos soldados. Estranharam o questionamento de Ana, mas deram a mesma resposta e ouviram algo parecido com o depoimento do padre.
__ Olha soldados, eu não acredito que foi Bernardo. Ele não ia gritar e anunciar o assassinato, teria voltado pra fazenda...
Foi interrompida por Lima:
__ Mas... Então a senhora tem outro suspeito? – indagou com um ar de acusação.
__ Não. Não mesmo. Não sei quem seria capaz de fazer tal crueldade com o coronel. Ele não era má pessoa.
__ Ana, sabemos que você tem toda a confiança da senhora Marília, é a escrava que a acompanha. Sabemos também que o coronel não gostava de você porque contou alguns segredos para sua sinhá, que a protege desde então.
__ Não estou entendo aonde você quer chegar soldado...
Nisso o padre pede licença e se vai para jantar.
__ Está tentando criar algo para me tornar suspeita?
__ Não, escrava – a palavra escrava saiu com um tom incrivelmente irônico – só estamos levantando todas as possibilidades.
__ Então que levantem todas – disse a escrava também em tom irônico, e despedindo-se – passar bem - tenho mais o que fazer.
Na varanda vários presentes já jantavam, elogiavam a comida de Francisca e falavam, e falavam, e falavam sobre todo mundo e todos os que poderiam ser os assassinos.
__ Eu não sei não compadre – disse um fazendeiro vizinho ao tio de Junqueira – eu nem sei devia estar falando, mas eu suspeito mesmo é da sinhá Marília.
__ Não me surpreende homem, pode falar. Eu também já suspeitei. Foram várias vezes que nos vimos e ele dizia que ela era muito ciumenta. Não podia ver ele se aproximar de nenhuma escrava mais bem feita que já ia de xingos pra cima. Essa Ana que anda com ela pra lá e pra cá por mim também tá metida nessa história. Eu só não acredito naquele coitado que tá lá no tronco.
__ Pois é. Mas é melhor que ele leve a culpa compadre, senão vai manchar o nome de sua família.
__ Nisso eu também concordo.
Na senzala, os escravos que já não estavam mais trabalhando foram convidados por Ana para irem à igreja velarem o corpo do coronel.
__ Eu não vou – disse um.
__ Nem eu – retrucou Conceição – esse aí já foi tarde. Ruim que nem ele deve tá ardendo no inferno a essa hora.
__ Não fala assim! Se te escutam! Aqui – continuou Ana – melhor dar uma passada lá e cumprimentarem a sinhá. Ela ficará agradecida.
__ Eu – disse o escravo que sempre trabalhava com Bernardo – fui com o Bernardo pra lavoura cedo. Ele tava tranquilo. Reclamou muito das dores das chibatadas que havia levado, ainda doíam, e voltou pra buscar o facão que tinha ficado na casa, pois o coronel queria conversar com ele e pedir que ele cortasse um mato, no fundo. Não sei com quem ele deixou o tal facão, mas o mato tá lá.
__ Isso muda muita coisa – exclamou Ana, e num tom de advertência – fique calado Chico, daqui a pouco vão dizer que foi você.
__ Eu não, eu estava na lavoura na hora do crime. Só fiquei sabendo na hora do almoço.
__ Mas – continuou Ana puxando-o para mais longe – pra quem ele deu o facão? Ele não falou nada?
__ Falou não. Só disse que precisavam do facão cedinho e que ele poderia buscar lá pelas nove horas. Mas o mato não foi cortado, tá lá do mesmo jeito, perto da pinguela do rio.
Marília procurava por Ana. Queria que ela a acompanhasse na casa para descansar. A mucama subiu para a igreja assim que a chamaram.
__ Ana, fica comigo no quarto, preciso dormir um pouco. Meu filho deve estar quase chegando.
__ Sim, eu fico aqui.
Ana remoía as palavras de Chico. Eram detalhes que iam se ajuntando.