867-BENTO CEGO VENDEDOR DA SORTE
— Olha a sorte! Loteria Federal de NATAL! Prá sábado! Um milhão! Um milhão!
Na manhã ensolarada da semana de Natal de 1945, ouvia-se de longe a voz fina de Bento Cego anunciando a sua mercadoria: bilhetes de loteria. Ao mesmo tempo, num contraponto intermitente, som das batidas da bengala na calçada de cimento:
TAP- TAP- TAP- TAP-
Bento Cego dirigia-se à Farmácia Madrilenha. A sua aproximação anunciada pelo barulhinho insistente e os gritos esganiçados interromperam a conversa entre os três homens no interior do estabelecimento.
— Cuidado com o degrau! – falou o farmacêutico Carlos D’Ávila.
— Chegou quem não estava faltando. — brincou o doutor Procópio Guimarães.
Atento ao degrau, o cego silenciou-se por instantes, até que, ajudado por Tonico Borborema, sentou-se no banco de madeira, onde já estavam o dono da farmácia e o doutor.
— Bons dias, amigos!
— Bom dia, Bento! — responderam em coro os três homens.
A Farmácia Madrilenha estava situada no Largo do Rosário, no centro da cidade, era o modelo de como seriam as farmácias do interior. Com três portas de acesso, tinha uma área de acesso anterior ao balcão de madeira, com vitrinas de vidro, onde ficavam expostos os medicamentos fabricados em laboratórios industriais: caixas coloridas de Biotônico Fontoura, A Saúde da Mulher, Capivarol e uma dezena de outros remédios. Sobre o balcão, de mais ou menos dois metros de extensão, era adornado, em cada extremidade, por dois grandes frascos de vidros (o farmacêutico afirmavam que eram de cristal da Boêmia), em forma de enormes peras, cheios com líquido colorido de diferentes cores: um verde e outro vermelho. Quando o sol da manhã incidia sobre aqueles enormes frascos a luz fragmentada enchia de claridade colorida e mágica enchia a grande sala.
As duas paredes laterais e a do fundo eram ocupadas, de alto a baixo, por armários de portas de vidro, onde se perfilavam centenas de frascos com produtos químicos e medicamentosos para a manipulação das receitas médicas. Os vidros, com as indicações do conteúdo em palavras estranhas, muitas em latim, de letras douradas, eram verdadeiras obras de arte.
Um banco de madeira estava colocado na parte da frente, entre as portas e o balcão, e servia para os clientes aguardarem a manipulação das receitas. Mas na parte da manhã, invariavelmente o banco era ocupado pelos senhores que faziam da farmácia ponto de encontro e de conversas amenas ou discussões acirradas, quando os pontos de vista divergiam.
— Então, Bento, vendendo muita sorte? — Indagou o farmacêutico.
— Qual o quê, seu Carlos. O povo parece que num tem mais fé na sorte.
— Então, é preciso ter fé para ganhar na loteria?
— Claro. Prá tudo acontecer neste mundo, é preciso ter fé. Acreditar. Eu tenho fé que ainda vou vender a sorte grande. E vai ser neste Natal.
O Doutor Procópio — assim chamado apenas em deferência ao fato de ser proprietário do único cartório da cidade — entrou na conversa:
— Acho que em vez de passar as manhãs aqui na farmácia, você devia era andar mais pelas ruas. Aqui você perde metade do dia em conversa.
— Não tem importância. Gosto de ouvir as conversas aqui na farmácia. E a sorte está aqui no meu bolso. Não preciso ter pressa em vender.
E assim decorriam as manhãs daqueles homens de bem com a vida, bons conversadores e que praticavam a arte do diálogo e da troca de idéias sem compromissos ideológicos, políticos ou religiosos.
Lá pelas onze horas, o grupo se dissolvia e cada qual ia para o seu almoço. No dia seguinte, como em todos os dias da semana (exceto aos domingos, quando a farmácia não abria as portas.
Bento Cego saia como chegava: batendo a bengalinha na calçada e gritando a plenos pulmões:
— Tá chegando Loteria Federal de NATAL! Olha a sorte! Um milhão! Prá sábado! Um milhão!
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O sábado 22 de dezembro de 1945 está na história da pequena cidade de São roque da Serra. Um bilhete com a com a sorte grande – um milhão de cruzeiros – fora vendido por Bento Cego a diversas pessoas da cidade. Metade do bilhete fora adquirida pelo Manoel Morais, empregado na oficina mecânica de uma agência de automóveis. A outra metade, composta de dez vigésimos, Bento a havia vendido para dez compradores diferentes.
Foi uma festa na cidade. Manoel Morais ganhou quinhentos mil reais e os outros dez, cinqüenta mil cada um. Foi o Natal mais comemorado, pois a alegria contagiou todos os habitantes.
— Eu falava, mas cêis não escutavam! — Bento Cego não cabia em si de contentamento. —E preciso ter fé. Eu tinha fé de vender a sorte grande, e vendi.
Entre risadas, deu a grande notícia aos seus amigos de conversa na farmácia:
— Pois não é que o Manoel Morais meu deu um “agrado”? Me deu vinte mil cruzeiros! Com esse dinheiro, posso comprar minha casinha, vou deixar de pagar aluguel.
E concluía, em tom de um convicto em sua crença:
— É preciso ter fé, gente. Fé na sorte.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 20 de novembro de 2014.
Conto # 867 da Série 1.OOO HISTÓRIAS