863-O PRIMEIRO VELÓRIO - Memórias

Quando fui ao um velório pela primeira vez tinha talvez uns dez anos. Naqueles tempos, ou seja, na década de 1940, pelo menos na minha família de descendentes de imigrantes italianos, gente severa, as crianças eram excluídas das conversas e não participavam de alguns rituais dos adultos — principalmente de velórios, enterros, visitas ao cemitério e assuntos que tais.

Mamãe me levou ao velório do seu compadre Humberto Colombarolli, que se realizava na casa da chácara do falecido, um pouco afastada da cidade. Fomos à tarde e o velório entrou pela noite, pois o patriarca de uma grande família havia morrido ao meio-dia e seria enterrado no dia seguinte.

Apesar da forte e ruim impressão que tive ao ver o corpo colocado sobre uma cama colocada na sala de visitas, à espera do caixão, recostei-me numa beirada de cama e cochilei. Já era noite fechada quando minha mãe me acordou do cochilo.

— Tonico, vamos embora.

Passei pela sala e olhei mais uma vez; o medo não impediu a curiosidade. Ela me segurava pela mão. Ao sairmos na escuridão não resisti e disse-lhe:

— Tou cum medo, mãe.

— Armandinho vai com a gente.

Ao meu lado apareceu o tio Armando, que me pegou pela outra mão.

E lá fomos os três, andando pela estrada na escuridão da noite.

Impressionado com o que eu tinha visto pela primeira vez, perguntei ao tio Armando, que era uma espécie de doutor sabe-tudo da família. Era o mais escolarizado, tinha até servido o exército em Três Corações, no seu quarto havia livros e revistas e um baú de recortes de jornais que me fascinavam como um tesouro.

— Tio, porque que eles não enterram logo o morto?

Antes que ele respondesse, mamãe se intrometeu:

— Ara, Toniquinho, deixa de fazer essas perguntas. Assim você vai ficar com mais medo ainda.

— Deixa ele perguntar, Mariínha – disse tio Armando. – E respondendo a minha pergunta, falou: — Por sorte li num artigo de Seleções um artigo sobre velórios.

E começou a me explicar, com sua voz clara e maneira elegante de falar:

—Na Europa, durante a Idade Média, que foi um período de muita ignorância e superstição, as pessoas que tinham dinheiro, isto é, os donos dos castelos, os soldados, os padres, reis e todos da corte usavam pratos de estanho para comer. O estanho, quando é oxidado...

— Oxidado? Que é isso? – perguntei

— É uma espécie de ferrugem, como acontece nas latas que ficam no quintal, debaixo de chuva. – Certos tipos de alimentos oxidavam os pratos, gerando um veneno mortal. O tomate, por exemplo, que é muito ácido, foi considerado por muito tempo como venenoso. Para beber cerveja ou uísque, usavam copos de estanho. Ás vezes, a bebida era contaminada pelo oxido. Naquele tempo, as condições de higiene eram péssimas, ninguém se dava ao trabalho de lavar copos e pratos.

Eu escutava em silêncio, olhando para os lados, principalmente para os locais mais escuros. Sentia medo, mas ao mesmo tempo, era incitado por uma estranha força a olhar para o escuro, à procura não sei do quê. Apertava as mãos de mamãe e titio, procurando segurança.

Tio Armando prosseguia na narrativa tétrica:

— Então, acontecia com os homens (e também com algumas mulheres) que bebiam muita cerveja ou uísque, deixava as pessoas não apenas embriagadas, mas lhes davam uma espécie de desmaio profundo. Alguém que visse uma pessoa naquele estado pensava que estava morta. Aconteceu que muitas pessoas foram enterradas assim, aparentemente mortas.

— Enterradas... vivas? — ousei perguntar.

— Sim. Mas quando descobriram, passaram a recolher o corpo e preparar o enterro. O corpo era então colocado sobre a mesa da cozinha por alguns dias e a família ficava em volta. Comendo, bebendo e esperando pra ver se o defunto acordava ou não.

Tio Armando falava das coisas fúnebres com a maior naturalidade. Parecia até que estava gostando do assunto.

Eu apertava as mãos, o terror aumentando. Felizmente, já estávamos entrando nas ruas iluminadas e o medo que sentia foi esmaecendo. Mamãe ralhou com o irmão:

— Ara, Armandinho! Pára com essa história. O Tuniquinho tá tremendo de medo.

— Já está no fim. – E concluiu:

— Foi devido a isso que surgiu o velório, que é a vigília, por doze horas, junto ao defunto, para saber se ele está mesmo morto.

Não falamos mais nada até chegarmos à nossa casa. Naquela noite, pedi para dormir no quarto de meus pais. Meu irmão Artur, que não sabia do terror que eu havia passado nas últimas horas, me chateou com sua gozação:

— Bobão, tá com medo de quê? Vai mijar no colchão. — E fez uma careta de deboche.

Não deu outra.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 24 de outubro de 2014

Conto # 863 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 29/08/2015
Reeditado em 29/08/2015
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