862-OS PIRATAS DOS MONTES DE AREIA-Memórias
A turma de trabalhadores da prefeitura chegou bem de manhã. Com picaretas e enxadões, os homens começaram a cavoucar a rua e com a terra amontoada fizeram uma barreira, impedindo o trânsito de carroças e dos poucos veículos motorizados na cidade. Os moradores do quarteirão foram tomados de surpresa. Era uma época em que as comunicações entre o poder público e a população reduziam-se ao mínimo, talvez mesmo para causar mistério e impacto. Mas logo a notícia correu: iam calçar o quarteirão da Rua Dr. Placidino.
Os velhos italianos, reunidos na loja do Chico Cervejeiro, situada no quarteirão que iria ser calçado, discutiram a obra municipal. A linguagem: uma mistura de italiano e português, apesar de viverem no Brasil há mais de cinqüenta anos. Alguns só falavam a língua italiana.
— Ma, Che cosa é questa? Vano calçar uno quarteron que non é nem começo nem fino dela rua? — Genaro Marchese abriu a discussão naquela manhã em que os trabalhos foram iniciados.
— Si, questa é la questione. Mas la resposta é semplice: onde habita il prefeto? — O dono da loja fez um suspense com sua pergunta, cuja resposta ele mesmo se apressou em dar.
— In quelo palacete que stá giusto nel mezo del quarteron.
Tinha razão o velho italiano. A razão do calçamento de um único quarteirão da longa rua estava na sua cara, ou melhor, na sua frente: o imponente palacete residencial do Capitão Ezequias, prefeito da cidade eleito na primeira eleição municipal, após a queda do ditador conhecido como Pai dos Pobres.
O serviço começou com o afundamento do leito da rua. Foi muita terra, cavoucada manualmente, transportada em carrocinhas até a Lagoinha, um brejo nos fundos do colégio das freiras.
— Tu sai quem va a trasportare la terra eu estão cavoucando? — perguntou um dos presentes. — É il Beniamino. Com la terra, va aterrar lo seu terreno, il pântano da Lagoinha.
O patrício Beniamino Malapesa era um homem de sucesso na cidade. Símbolo daqueles imigrantes empreendedores, que vieram “fazer a América”, não importando se era do norte ou do sul. Dono de talvez cinquenta carroças equipadas e respectivos burros, era concessionário do serviço de coleta de lixo na pequena cidade. Aceitou de bom grado o aterro. Foi duplamente beneficiado: alugava suas carroças para o transporte e aterrava o brejo, que mais tarde seria loteado, como terrenos urbanos. Transformava uma área inútil em proveitoso investimento imobiliário. .
Rebaixado o leito da rua, veio a areia: carroças e mais carroças de areia. Foi então que apareceram os meninos da rua Dr. Placidino e da vizinhança. Os montes de areia, depositados em toda a extensão do quarteirão, para servirem de base aos paralelepípedos, fizeram a alegria da criançada.
Era um areia limpa, tirada do rio Liso. Amontoada ainda úmida se prestava a fazer verdadeiras obras de arte: muralhas, castelos, montes com cavernas, o que desse na imaginação.
Logo se estabeleceu um brinquedo: montes com cavernas de piratas. Cada monte de meio metro de altura foi ocupado por um grupo de “piratas”. Cavernas eram escavadas, para esconderijo dos tesouros. E nomes foram dados: Monte da Caveira, Monte do Tesouro, Monte do Esqueleto, Monte de Robinson Crusoé. Cada monte a quatro ou cinco garotos, e ficavam separadas entre si pelo mar, que eram regos secos que corriam entre as ilhas. A imaginação dos garotos enchia tais regos de água azul dos mares coalhados de perigos.
As guerras entre os piratas eram constantes. Das casas dos garotos vinham os mais diferentes objetos, que se transformavam em barcos, navios, cofres com tesouros, etc. Além dos piratas de verdade, isto é, os garotos, havia os habitantes das montanhas: toscas figuras feitas de sabugo de milho, de pedaços de cabo de vassoura ou bonecas surrupiadas das irmãs.
O calçamento começou a ser feito: diversos homens, os calceteiros, começaram a correr as primeiras fiadas de pedra cabo-verde sobre a areia espalhada no leito da rua. As pedras, uma a uma, iam sendo colocadas lado a lado. Ajustadas as pedras em formato de grandes tijolos, vinha o Zecão da Sinfronia socando as pedras com o socador, pesado toro de madeira que dava o acabamento na obra de calçamento.
A presença dos meninos começou a incomodar os homens trabalhando. Os garotos iam construindo os montes cada vez mais longe dos trabalhadores. Todas as tardes, a brincadeira terminava com uma fragorosa batalha entre todos os personagens dos montes e destruição das cavernas e esconderijos. Jogavam areia uns nos outros, chutavam os bonecos e os brinquedos e o areal ficava uma verdadeira terra arrasada.
Os calceteiros eram incomodados pelos garotos, que deixavam no meio da areia os restos das batalhas: tocos de madeira, pedaços de cabos de vassoura e sabugos. No dia seguinte, os capataz dos calceteiros zangava com os meninos:
= Parem com essa brincadeira ou vou falar com seus pais.
Mas que parar que nada! A brincadeira só terminou quando o calçamento do quarteirão ficou pronto.
As pedras lisas e escuras brilhavam como tumbas dos montes aplainados e soterrados. Houve inauguração solene com charanga, discursos e foguetório.
Dos montes de areia só restaram as lembranças. Mas logo começaram as brincadeiras com os carrinhos de rolimã sobre o calçamento novo.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 23 de outubro de 2014
Conto # 862 da “Série 1OOO Histórias”