861-INDIOS, PADRES E PIRATAS- Lenda e História

INDIOS, PADRES E PIRATAS

OU

A LENDA DE IRECÊ

Os sofrimentos dos índios da taba Guana aumentavam dia a dia. Acabaram-se os dias de relativa paz entre eles e os brancos.

Situando-se ao norte de Olinda e Recife, os nativos haviam já se acostumado com os portugueses, com os quais conviveram pacificamente. Os criadores de gado eram homens rudes mas por força de estarem sempre em contato com os índios, passarm a ter uma convivência relativamente pacífica.

Depois, chegaram outros homens, também portugueses, porém com outro modo de vida. Eram os donos de engenho, que tinham necessidade de muitas terras para o cultivo da cana e invadiam e tomavam as terras dos Guanás.

Os índios, de índole pacífica, foram ficando impacientes, e estava se tornando difícil para o cacique Guanaitapira (“O chefe que tira fogo das pedras”) conter a exaltaçãode ânimos de seu povo. Guanaitapira era competente e sabia administrar situações difíceis, e contava ainda com a ajuda da esposa, Irecê (“A que está à tona da água”), respeitada por sua valentia e coragem.

Guanaitapira e Irecê e os outros mais idososda tribo não entendiam tais transformações por parte dos homens que vinham do mar. Os criadores de gado presenteavam a tribo, vez que outra, com rezes com as quais se banquetevam. Os plantadores de cana, ao contrário, perseguiam-nos e punha fogo nas terras para o plantio da cana. Uma crueldade sem fim.. Animais morriam queimados, os índios sofriam quando o vento trazia a fumaça para a banda de suas tabas. Acontecia até de levavam presos os indios para serem escravos nos engenhos.

Se as coisas estavam ruins, ficaram pior com a chegada de um outro tipo de homem que vinha do mar: homens mais claros, cabelos amarelos ou avermelhados, com roupas diferentes. Chegaram atacando a vila grande com fogo disparado de seus navios. Desembarcaram incendiando casas e o forte dos portugueses. Tomaram conta de tudo à força.

Um novo chefe branco agora dominava a vila grande que chamavm de Olinda. E seus homens eram muito mais violentos do que os anteriores: faziam incursões nas aldeias, invadiam, queimava, matava mulheres e crianças e caçavam e prendiam os indios fortes para servirem como escravos.

Os índios não sabiam que a vila grande fora dominada pelos holandeses, chefiados por Mauricio de Nassau, que precisava urgentemente de aumentar a produçãode açucar e portanto, precisavamde escravos para trabalhar ns plantações. Por volta de 1640, os holandeses quase dizimaram as populações indígenas com essa política cruel.

Na aldeia de Guanaitapira a desolação era total. Impotentes para enfrentar os brancos com suas armas que cupiam fogo e matavam, já haviam sofrido muitas perdas.

—Nosso povo está condenado, disse o cacique ao conselho de anciãos, tendo ao lado sua mulher, Irecê, que participava dasdecisões da tribo.

Foi ela quem levantou a voz para dizer:

—Sim, se ficarmos aquí, nosso povo será morto ou escravizado. Só temos uma solução.

Os índios a olharam com surpresa, pois todos estavam convencidos do inevitável fim da tribo.

— Vamos embora. Vamos fugir para outras terras onde não exista essa maldição de homem branco.

Os índios, já assustados com as inscursões do branco, ficaram ainda mais assustados com as palavras de Irecê.

Um dos velhos indios disse:

—Aqui nascemos, aqui devemos morrer. Se morrermos noutro local, nossos espíritos ficarão vagando e não encontrarão descanso.

Não foi naquela reunião que decidiram partir, conforme sugestão de Irecê.

Mas, uma lua depois, aconteceu um novo ataque dos brancos à taba dos Guanaitapira . Uma investida mais forte do que as anteriores, em que as ocas foram queimadas e eles ficaram ao relento, com muito feridos e mortos, e meia duzia dos melhores gueirreiros levados como escravos. Este ataque foi o que fez todos os indios concordarem em abandonar a terra de seus pais, a terra sagrada. E Irecê foi muito importante para esta decisão, pois todos confiavam nela.

Antes de partirem, Irecê imaginou um plano no qual os homens de sua tribo entraram furtivamente em diversos engenhos onde seu irmãos de sangue estava escravizados, e libertaram não só os índios, mas tambem uma grande quantidade de escravos negros.

A fuga foi feita ao anoitecer sob uma marcha forçada que durou toda a noite, por caminhos e sendas que só uns poucos índios conheciam. Quando os donos de engenho se deram conta e foram até às ruinas da aldeia de Guanaitapira, as encontraram completamente desertas.

Guanaitapira e Irecê tinham, na ocasião da fuga, uma filhinha, chamada de Inaguarí, com três anos de idade. A menina era carregada pela mãe ou, quando necessário, por uma das outras índias, que devotava especial ateção à criança.

Irecê dava o exemplo de resistência. Caminhava na frente e animava a todos. Sabia escolher caminhos em que não poderiam ser observados. Ordenou que alguns indios ficassem atrás da coluna, tentando apagar pistas ou sinas da passagem dos índios.

Dirigiram-se para o sul. Por caminhos ínvios, desconhecidos do brancos, rapidamente, apesar do grande numero de fugitivos, chegaram ao Quilombo dos Palmares.

Por ser um agrupamento de negros foragidos, os índios não foram bem recebidos no quilombo. Mesmo assim, ficaram por algum tempo, descansando e preparando-se para viajar para o sul, sempe para o sul. No quilombo permaneceram os negros que haviam sido libertados pelos ardís de Irecê.

Os guanás deixaram o quilombo para trás e deviaram-se um pouco para o oeste, para as bandas onde o sol se põe. Imensas dificuldades no percurso.Não sabiam o que encontrariam pela frente. Passaram sede e fome em muitos trechos. Não tinham conta do tempo que durou a longa caminhada. Escolhiam passagens por lugares desertos, onde o perigo de encontrar brancos era menor. Enontraram algumas tribos índigenas. Irecê sabia conversar com os indios por cujas terras passavam e como estavam só de passagem, não foram molestados.

Muitas veses estiveram à beira do desânimo.Mas Irecê, uma lider autêntica, o convencia a todos a prosseguirem. Ao se deparaem com um grande rio (o São Francisco), constuiram pirogas e jangadas com toros amarrados de palmeira, e seguiram rio acima.

Durante quatro luas subiram o rio até onde foi permitida a navegação das embarcações rústicas dos índios. Quando não puderam mais remar rio acima, desembarcaram na margem leste, numa região onde já se notava a presença de brancos, pois ao longe divisavam-se plantações e construções.

O cacique, acometido de doença adquirida no rio, acomapanhava com dificuldade a tribo na longa jornada. Irecê estava, então, à frente da caravana, e todos a obedeciam, pois admiravam sua coragem, sua argúcnia e sua bondade para com as crianças e doentes.

Após acamparem à beira do rio, se dirigiram ao povoamento mais próximo . Encontraram remanescentes de outra tribo, como eles, do ramo tupi. Estes indios já conviviam em paz com os habitantes da vila e, portanto, não foi difícil o contato entre Irecê e os brancos.

O estabelecimento da tribo de Guanaitapira foi tranquilo, graças à boa índole dos residentes brancos do vilarejo e dos proprietários de terras da região. Faz parte da história da vila a grande influência de dois padres: padre Dimas, o responsável pela manuteção da fé católica entre os habitantes de uma vasta região, e o padre Pierre.

Este era um agregado, um tipo de aventureiro, padre sim, de origem francesa mas que havia permanecido como prisioneiro de corsários durante muitos anos. Na fuga, fora ferido na perna e manquitolava. Fora acolhido pelo padre Dimas e gostava do convivio com os índios, aos quais contava as histórias horriveis de sua vida om os piratas. De tanto contar histórias de piratas, passou a ser identifiado também como um pirata e os brancos o chamavam carinhosamente de Pierre Pirata.

Foi ele que encontrou um local propício ao estabelecimento dos indios da tribo de Guanáitapira e obteve a permissão do proprietário das terras (milhares e milhares de alqueires sem conta) Alfonso Bragança Naves para que os índios contruissem suas palhoças.

Quando o velho cacique morreu, muitas e muitas luas depois da chegada de sua tribo, eles já estam totalmente integrados com os brancos.

A Lenda vira história

Os dois grandes fazendeiros eram Alfonso Bragança Naves e o capitão Nepumuceno Quintiniano Oliveira. Com o passar do tempo, as tribos foram sendo chamadas de índios Oliveira (os já estabelecidos) e os Naves (os da tribo de Guanaitapira).

Os Guanás-Naves (se é que podemos identificá-los desta forma) aprenderam rapidadmente as lides da criação de gado: pegar e marcar o gado, ordenar vacas, cuidado com os bezerros, e coisas afins, e sua integração foi rápida. Então também foi grande a importância de Irecê, viúva e com a filha Inaguari, que crescia indomita e bela como a mãe.

A tribo, que pudera se organizar dentro de costumes ancestrais, tinha também a assitência religiosa principalmente do Padre Pierrre, e se deixaram batisar na crença cristã, passando a seguir os ritos católicos,

Padre Pierre seduzia a todos com suas histórias mirabolantes. Sedução que atingiu especialmente a india Inaguari. E o inevitável aconteceu: do relacionamento entre os dois, nasceu um menino. Não constitui escândalo na tribo, pois entre os brancos e os índios aculturados era comum o relacionamento que levava à gravidez de índias. O padre Dimas, tolerante e compreensivo, exigiu que padre Pierre renunciasse ao seu estado de sacerdote e casasse com Inaguari nos ritos católicos. E que fosse morar na tribo, a fim de estar com a esposa e a filha.

Por força da linhagem, o menino “Guanaguaçu” tornou-se o chefe da tribo, pois era neto de Guanaitapira.

Passaram-se os anos.

Na segunda metade do século XVIII (a partir de 1750) as famílias Naves e Oliveira, acrescidas de novas gerações de homens trabalhadores e mulheres que deram à vida dezenas de novos membro, sentiram necessidade de procurar mais pastagens para seus rebanhos de milhares de cabeça.

Reunindo grande parte dos filhos e filhas, genros, noras e netos, os velhos chefes das familias organizaram uma caravana de muitos carros de bois, tropas de burros e muares e algumas centenas de rezes. Os chefes se dirigiram, cortando serras e montes, atravessando rios, percorrendo caminhos poucos conhecidos, para o oeste, à procura de boas terras de pastagens. Com eles seguiram inúmeros índigenas, segunda e terceira gerações dos que haviam chegados à quase um século.

Na caminhada para oeste, chegaram às terras do vasto Termo de Jacui, onde foram bem recebidos. Alí souberam que haviam de terras boas pelas proxmidades da Serra de Ipoméia que poderiam ser adquiridas dos proprietários já alí estabelecidos, os Antunes Maciel, em um núcleo sob a proteçãode São Sebastião.

Lenda e história se confundem.

Foi muito intensa a miceginação entre brancos e índios e entre os membros das duas familias Naves e Oliveira. De tal forma que é corrente entre a famila Oliveira Naves uma tradição de incluir entre seus antecessores um padre francês e uma filha de cacíque índigena.

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Na tentativa de estabelecer um elo entre a ficção e a história, esse conto foi escrito como homnagem a uma importante família – OLIVEIRA NAVES, pioneira na formação da cidade de São Sebastião do Paraíso.

ANTONIO ROQUE GOBBO

27 de setembro de 2014.

Conto # 860 da série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 25/08/2015
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