859-ESPETÁCULO DE HIPNOTISMO-Memórias

O estreito Palco do Cine São Sebastião servia para apresentações teatrais ou shows de variedades de artistas que passavam, aleatoriamente, pela cidade.

Estava com 16 anos e tinha uma curiosidade obsessiva por tudo quanto fosse novidade. Não perderia aquela apresentação por nada, ainda que enforcando a aula noturna da Escola de Comércio. Pois era uma quente noite de outubro de 1951, quarta-feira, com aulas plenas e a falta implicaria em severa punição infligida pessoalmente pelo diretor.

E lá estava eu no palco do cinema, sentado ao lado de mais seis ou sete pessoas, em cadeiras comuns, abobalhado, sem compreender exatamente a situação. Já estava meio hipnotizado.

A seleção feita pelo hipnotizador fora de pura magia naquele momento. Pediu que os presentes na platéia cruzassem os dedos das mãos sobre as próprias cabeças. Após o comando de palavras ininteligíveis, ordenou que desfizéssemos o cruzamento dos dedos e as mãos voltasse ao normal, o que a maioria fez com naturalidade.

Uma dezena de pessoas, porém, não conseguiram descruzar os dedos. Eu entre elas. Senti que as mãos ficaram travadas sobre minha cabeça e não conseguia separá-las.

— As pessoas que não conseguiram separar as mãos, subam ao palco. Vou ajudá-las. — disse Alkalim-Karam, impressionante sob seu turbante violeta e roupas orientais.

Subimos ao palco como caminham os soldados prisioneiros de guerra: passos indecisos e mãos cruzadas sobre as cabeças.

No palco, fomos convidados a assentar em cadeiras simples adrede preparadas numa fileira única, de frente para a platéia.

Colocando as mãos sobre a cabeça de cada um, o mago foi liberando as mãos, que caíram frouxas ao longo do corpo. Já estávamos em poder do hipnotizador. As mãos estavam livres mas as mentes estavam presas à vontade do mago.

Aquele era o teste de predisposição para ser hipnotizado.

Aconteceu em seguida um hipnotismo coletivo (e hoje sei que o mago era bom nisso), que nos colocou a dormir.

A platéia (me contaram depois os amigos que lá estavam) sentiu os efeitos do poder magnético do hipnotizador, criando um clima favorável ao espetáculo.

Do que aconteceu comigo no palco quase nada me lembrei, ao fim do espetáculo. Em determinados momentos ouvi sons: música (uma valsa?), sons de guerra, metralhadora pipocando, ratátátá...

Mais tarde, após o espetáculo já na praça, os amigos e colegas me contaram que o mago nos fizera dançar no palco (de olhos fechados) e que, quando se ouviram sons de batalhas, de armas de tiro, o mago me ordenara e eu obedecera, que “atirasse” na multidão. E que eu me levantei da cadeira, e cheguei até a beira do palco e simulando ter uma metralhadora nas mãos, “disparei” contra a platéia, enquanto meu corpo remexendo e agitando-se como um soldado atacando os inimigos.

Me contaram mais, que eles, da platéia, reagiram de vários modos: com gritos e risadas. Palavrões foram ouvidos entre os sons bélicos.

Acordei com o comando do hipnotizador, meio tonto, sem me lembrar de nada.

Voltei à minha poltrona na platéia, e pouco percebi do resto do espetáculo.

Contaram-me ainda que eu saíra do sono hipnótico ao estalar dos dedos do mago, mas que duas das pessoas que estavam no palco demoraram a acordar, e viram suor no rosto de Alkalim-Karam.

Fui um dos artistas do espetáculo, embora de nada me lembrasse. Naquele fim de semana, fui o herói entre colegas e amigos, objeto de comentários de gracejos, mas tudo bem.

Era um tempo de pequenas aventuras e grandes mistérios — cujas explicações só viriam no decorrer do tempo.

ANTONIOROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 20 de setembro de 2014

Conto # 859 da série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 23/08/2015
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