O Sol esticava seus primeiros raios, ainda na madrugada, sobre o Morro da Fé. A luz, receosa e pálida, tentava alcançar as estreitas vielas, rebatia nas paredes em tijolo cru e iluminava as poucas clareiras da comunidade. Para quem visse de longe, a favela ia surgindo como um castelo medieval em ruínas, aquela massa vermelha e compacta de barracos, antenas e telhados de zinco resplandecia tanto quanto a Igreja da Penha.

Dona Carmem, acordada desde às quatro horas da manhã, preparava o parco café do filho, que se apressava para descer e enfrentar as batalhas do asfalto. Evangélica fervorosa, Carmem batizou o garoto com um nome original: Zelote.

No fim, não deu muito certo, pois Zelote, agora com seus recentes 18 anos de idade, era conhecido por todos apenas como Zé. Antes das seis, ele fincava os pés na Avenida Brasil, torcendo para que os engarrafamentos do verão se estendessem o dia inteiro, precisava vender todo o estoque de água que carregava em seu isopor. Nunca teve uma vida fácil, estudou pelo tempo que foi possível estudar, o tempo que sua mãe considerou suficiente. Depois, o trabalho chegou como obrigação, não para viver, mas para preservar a sobrevivência. Gritar acenando com garrafas d’água sobre o piche escaldante da pista nem sempre lhe despertava um sentimento de dignidade, mas Dona Carmem o convencera que a Avenida Brasil representava a vontade de Deus e os desígnios de Deus sempre são justos.

O cansaço, a ausência de um sentido em que pudesse se agarrar no meio daquele inferno de carros e calor, às vezes, o abatia. Nessas horas, lembrava dos insistentes convites de seu amigo Derrame para trabalharem juntos. Derrame havia se tornado gerente de uma das bocas de fumo do Complexo do Alemão e não se conformava em ver Zelote, seu amigo de infância, se acabando como vendedor de água nas ruas da Penha.

Era de praxe, duas vezes por semana Zelote parava numa lan house na Avenida Vicente de Carvalho para brincar e sonhar um pouco em seu Facebook. Amado, o proprietário, o permitia usar a Internet até o fechamento da loja. E foi acessando o Facebook, numa dessas noites de Internet,
 que Zelote conheceu Maica Kunzler, uma exuberante loira catarinense, com um par de expressivos olhos azuis, descendente de alemães e que estava de visita ao Rio. Zelote se deparou com a foto de Maica numa solicitação de amizade enviada por ela. Aceitou. A primeira conversa pelo chat foi breve.

De onde me conhece? ” – Interrogou Zelote.

Não conheço, mas te achei lindo” – Maica não hesitou em ser direta.

De fato, Zelote estampava os traços da virtude física: negro, alto e o corpo modelado pelo constante exercício que praticava ao carregar sem trégua a pesada caixa de isopor.

Os dois jovens já se falavam há semanas e reconheceram o momento de marcarem um encontro. Porém, com uma quantia que mal dava para a pipoca, o vendendor de água apelou à boa vontade de Derrame. Explicou a situação e Derrame concordou em dar o que o amigo precisava. Foi generoso, depositou na mão de Zelote um robusto lote de notas de cem reais. Aproveitou para fazer deboche, sua marca registrada.

Neguinho tá gamado. Ô, danado. Mas não inventa de fazer filho, moleque. Tu é muito novo. ”

Na véspera do encontro, Zelote não conseguiu pegar no sono. Deitou-se sobre a laje da casa, num dos pontos mais altos do morro, e contemplou as estrelas de um céu quase opressivo de tão vasto. Se havia beleza na favela, ela estava nas estrelas, como se nelas ele confirmasse a sabedoria divina tão decantada pela mãe.

Você mora no Complexo do Alemão? ” – Maica quis confirmar ao celular.

Zelote pressentia uma incômoda sensação quando o associavam ao Complexo do Alemão, um misto de temor e preconceito em quem queria identificá-lo como morador de uma região que parecia ser conhecida no mundo todo.

Complexo da Penha.” – Ele corrigiu a origem.

Ah! Mas tu vais ser o meu Alemão, guri.” – Maica decretou o novo apelido.

Zelote não protestou.

Não sabiam se aquela febre era amor, mas as fantasias das conversas ao telefone transpiravam a morna certeza dos que desejam se entregar à volúpia feroz que só se conhece na juventude.

Sábado, praia de Copacabana, meio-dia, em frente ao banco onde fica a estátua de Drummond. Zelote foi pontual, mas não avistou Maica. Sentou-se ao lado de Drummond, sem se importar com a sobriedade da companhia. Aguardou. Vestia bermuda branca e camiseta vermelha, conforme combinaram. Trinta minutos depois da hora marcada para o encontro, continuava esperando. Todas as loiras da praia haviam desaparecido. O calor abrasava tudo, o Sol quase a pino fazia subir um vapor insuportável por todos os lados, o calçadão fervia como um caldeirão de canibais.

Avistou uma loira de cabelos longos, vestindo saída de praia e a parte de cima do biquíni. Andava como se estivesse querendo localizar alguma coisa ou alguém. Seria Maica? Estava distante, não conseguia identificá-la. Sentiu um misto de felicidade e esperança. Correu na direção dela. De repente, um empurrão interrompeu sua rota, o lançou à frente num brusco tropeço que o fez estalar a face contra as pedras portuguesas.

Ladrão! Ladrão!

Escutava os ecos dos gritos, mas o tombo o deixou zonzo, não entendia o que estava acontecendo. Alguém mexeu nos seus bolsos e arrancou o maço de notas que Derrame lhe deu.

Olha a quantidade de dinheiro que este safado está levando. Ladrão safado! ” – Berrava a voz furiosa.

Sentiu a dor penetrante de um chute no alto das costelas, depois outro pontapé o atingiu na cabeça. A vista escurecia. Alguém o puxou pelos pés e o arrastou com firmeza até a beira de um poste. Tiraram suas roupas, amarraram seus punhos e tornozelos. O corpo queimava estirado na calçada incandescente. Quis gritar por socorro, mas a voz não foi além da respiração ofegante. O esmurraram e o viraram de bruços. O sangue escorria como seiva rubra que se misturava aos grãos reluzentes da areia. Sob o azul mortificado e árido do céu de Copacabana, Zelote não mais enxergava o perdão das estrelas da Fé.











 
Alexandre Coslei
Enviado por Alexandre Coslei em 23/08/2015
Reeditado em 25/08/2015
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