MUDANÇA

Bete é mais jovem do que eu, ainda cultiva o frescor da beleza pungente dos seus 35 anos, esposa que tomei pela força da promessa de uma boa pensão como herança e que me fazia motivo de piadas na vizinhança. Olha o vovô garoto, debochavam à minha passagem.

Meu corpo ultrapassava as 80 primaveras invernais, mas a mente não me permitia olhar o espelho sem ver refletida a insistência de uma juventude imaginária. Eu estava velho, com todo o peso das artrites, artroses, hérnias e cansaços que se pudessem imaginar. Velho: palavra que não admitia boas interpretações semânticas. Nas vezes em que eu tombava, derrubado pela fraqueza tremulante das pernas, a Bete exalava toda a sua jocosa inteligência me definindo, na impiedade da metáfora, como um adolescente montado num pangaré chucro e manco. Fraturei o fêmur e ela decidiu me internar numa casa de repouso. Na verdade, casa geriátrica, esse é o nome horroroso que ocultavam sob qualquer verniz alegórico de mau gosto. Como eu não tinha filhos, a decisão só coube a ela. Tentei contradizê-la, mas ninguém contrariava a Elisabete. Desconfortável numa cadeira de rodas, me restava contemplar o dia da mudança.

Uma sofreguidão me locomover rodeado por todas aquelas caixas. Não eram muitas, mas entulhavam o asfixiante quarto do asilo. Meus olhos se perdiam na textura marrom e densa do papelão amontoado. Que estranho encarar minha vida em pacotes, sendo carregada de um ponto ao outro, como se fosse uma precária ressurreição itinerante. Não foi possível mudar com todos os meus pertences, trouxe aquilo que o espaço claustrofóbico da nova residência permitiu. Um renascer no purgatório. A história de um homem com etiqueta de transportadora: Move Express.

Sorria, você está sendo filmado, - o aviso de uma câmera inoportuna no quarto. Alegavam que era para a nossa própria segurança. Ah, Deus! .... Por que passaste os segredos da tua onipresença à humanidade? Prometeu foi acorrentado por menos do que isso.

Ilhado pelo conjunto de embalagens que formavam o mosaico da minha vida, me dei conta, num momento mágico, que a alma é um mero apêndice externo, capaz até de ser embrulhada para presente depois do nosso fim. E não duvido que muitas das minhas partes, ali embaladas, serviriam como doações que Bete distribuiria para se livrar dos bens indesejados. Alimento a mais robusta certeza que, após o atestado de óbito ratificar a minha desconexão com o universo, eu não seria cremado, conforme a vontade expressa. Bete, um exemplo de ganância, me rifaria pela cidade.

Definitivamente, a vida após a morte existe e nada mais é do que as quinquilharias que encontramos espalhadas pelos brechós da cidade. Ressureição não é milagre, trata-se apenas de uma versão do materialismo que ninguém viveu para escrever.

Bete não cansa de me chamar de ranzinza. Não sou ranzinza, sou filósofo, um empírico. Sim, lúcido, me sinto totalmente lúcido. Concordei com a internação por não encontrar resposta para os argumentos indefensáveis da senilidade: de que vale a lucidez com pernas quebradas?

Confesso, não queria ter sobrevivido tanto para alcançar este futuro. Século 21, quem diria.... Vim parar num planeta onde o velho nunca foi tão velho. Observo a Bete digitando frenética no celular e me assola a nostalgia delirante de escrever epístolas. Fui um missivista e tanto nos meus tempos de rapaz. Quando me apresentaram ao advento do e-mail, preconizei: é o extermínio dos românticos, acabou a literatura.

Certa vez, assisti a uma senhora na TV anunciar que estava completando 80 anos e o que viesse depois desse degrau seria lucro. Lucro?! Que estupidez! A velhice é um empréstimo que se paga com juros de agiota, isso sim. E o sono que tenho? Um sono pavoroso, torna a prorrogação da existência uma jornada mais onírica do que real.

Elisabete já foi, esqueceu de se despedir. Ela disse quando volta?

Perdoe-me, afeiçoado colega. Nem me apresentei, não nos apresentamos. Não sei seu nome, mas se vamos dividir o quarto, rogo pela sua paciência com meus momentos de silêncio. Agora, vou ver o armário e calcular como posso dispor nele o meu cadáver esquartejado. Releve a força da expressão, é o estresse. Se quiser me ajudar a esvaziar as caixas, fico grato.

Obrigado.
Alexandre Coslei
Enviado por Alexandre Coslei em 23/08/2015
Reeditado em 28/05/2016
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