OUTONAL
Vê-lo estirado, regelando naquela maca de aço, sem sequer um lençol que lhe amparasse o corpo.... Aquela visão me doía. Afinal, passamos uma vida juntos.... Uma vida. Tantas alegrias, tanto afeto. Eu me esqueci que avançávamos em linhas paralelas que se estendiam juntas, mas uma delas estava destinada a ser ainda mais breve do que a outra. Você foi breve, meu querido, sem deixar de ser intenso.
Definitivamente, o amor é uma lição. Que me rotulem de piegas, que reduzam os meus pensamentos a um clichê passional, não me importa, eu o amei tanto quanto se pode amar a um filho. Na excêntrica ironia do meu enredo pessoal não me coube gerar um filho. Foi você, com essa generosidade dos que professam a inocência, que veio adotar o hiato dos meus dias.
Guri, – lembra? - Assim eu o batizei desde a noite em que nos conhecemos. Tudo passou tão rápido.
Antes, eu não acreditava em nada. Um descrente que não ruminava remorsos. Passei dos cinquenta anos sem laços que me atassem ao mundo. Então, você surgiu materializado na única palavra que dá sentido a um texto desordenado e desconexo. Meu guri. Eu gostava de cantar para você e seus ouvidos apurados, naquele sempre desmedido carinho, pareciam gostar de ouvir.
Quantas vezes você me beijou as mãos? Seus beijos me curavam da solidão ancestral dos homens. Nós nos cuidamos, guardamos um ao outro em nome de uma virtude tão nobre que se desbota na mesma proporção em que evolui a humanidade. Você nunca perdeu a inocência, essa singeleza visceral que resgatava cada detalhe que eu abandonei no crepúsculo da infância. Fomos crianças nos banqueteando com brincadeiras em longos recreios ao sol.
Chove. Os vidros da janela se embaçam enquanto resistem ao ímpeto dos ventos frios do lado de fora. Galhos outonais se cumprimentam e cortam o silêncio do meu luto. Poupe seu fôlego, ele está extinguindo. Sinto em mim a teimosa da esperança que não crê em separações. Perdi tantos amores e acho que jamais sepultei nenhum deles. Se existe um Deus e ele é magnânimo, suplico agora: permaneça comigo, Guri.
Quero dar-lhe um abraço. Tenho receio de sufocá-lo com o meu desespero, me consola poder acariciá-lo. Que furioso arrepio de euforia é a fé. Recordo-me da noite em que comungamos nossas almas pela primeira vez. Você me ensinou a desfrutar o presente, esse sopro perfumado de um monge budista. Sua presença se impôs e a solidão desapareceu. Não é você quem morre, é a minha solidão.
Seus olhos estão se fechando. Não, não se esforce na sofreguidão do último latido. Não me console com o adeus. É como uma folha que cai e se confunde com o marulhar das árvores sob a chuva. Aceitou a hora de partir.
Vê-lo estirado, regelando naquela maca de aço, sem sequer um lençol que lhe amparasse o corpo.... Aquela visão me doía. Afinal, passamos uma vida juntos.... Uma vida. Tantas alegrias, tanto afeto. Eu me esqueci que avançávamos em linhas paralelas que se estendiam juntas, mas uma delas estava destinada a ser ainda mais breve do que a outra. Você foi breve, meu querido, sem deixar de ser intenso.
Definitivamente, o amor é uma lição. Que me rotulem de piegas, que reduzam os meus pensamentos a um clichê passional, não me importa, eu o amei tanto quanto se pode amar a um filho. Na excêntrica ironia do meu enredo pessoal não me coube gerar um filho. Foi você, com essa generosidade dos que professam a inocência, que veio adotar o hiato dos meus dias.
Guri, – lembra? - Assim eu o batizei desde a noite em que nos conhecemos. Tudo passou tão rápido.
Antes, eu não acreditava em nada. Um descrente que não ruminava remorsos. Passei dos cinquenta anos sem laços que me atassem ao mundo. Então, você surgiu materializado na única palavra que dá sentido a um texto desordenado e desconexo. Meu guri. Eu gostava de cantar para você e seus ouvidos apurados, naquele sempre desmedido carinho, pareciam gostar de ouvir.
Quantas vezes você me beijou as mãos? Seus beijos me curavam da solidão ancestral dos homens. Nós nos cuidamos, guardamos um ao outro em nome de uma virtude tão nobre que se desbota na mesma proporção em que evolui a humanidade. Você nunca perdeu a inocência, essa singeleza visceral que resgatava cada detalhe que eu abandonei no crepúsculo da infância. Fomos crianças nos banqueteando com brincadeiras em longos recreios ao sol.
Chove. Os vidros da janela se embaçam enquanto resistem ao ímpeto dos ventos frios do lado de fora. Galhos outonais se cumprimentam e cortam o silêncio do meu luto. Poupe seu fôlego, ele está extinguindo. Sinto em mim a teimosa da esperança que não crê em separações. Perdi tantos amores e acho que jamais sepultei nenhum deles. Se existe um Deus e ele é magnânimo, suplico agora: permaneça comigo, Guri.
Quero dar-lhe um abraço. Tenho receio de sufocá-lo com o meu desespero, me consola poder acariciá-lo. Que furioso arrepio de euforia é a fé. Recordo-me da noite em que comungamos nossas almas pela primeira vez. Você me ensinou a desfrutar o presente, esse sopro perfumado de um monge budista. Sua presença se impôs e a solidão desapareceu. Não é você quem morre, é a minha solidão.
Seus olhos estão se fechando. Não, não se esforce na sofreguidão do último latido. Não me console com o adeus. É como uma folha que cai e se confunde com o marulhar das árvores sob a chuva. Aceitou a hora de partir.