o lobo
O pai caminhava até a sua cama e lhe dava boa noite com um beijo na testa, benzia-o desenhando no ar, próximo a fronte e ao peito, a mesma cruz que o seu falecido pai também arquitetava invisível e antes de fechar a porta, desligava o interruptor. Quando a luz do quarto se apagava tudo era devorado pela escuridão: os brinquedos, a cama, o guarda roupa e através das trevas o lugar se estendia ao infinito por todas as direções. Seus olhos sofriam com o luar parco e frio sobrando nas frestas das venezianas mas isso lhe servia de farol numa navegação insólita sobre um oceano noturno de aguas tornando-se tensas. Através delas soprava o uivo ensandecido de um vento frio que a noite lá fora trazia, invadindo o seu íntimo provocando tormento. Sentia-se caçado mais uma vez, aquela era a hora do lobo. A criatura o visitava todas as noites de insônia, mas nunca viu seus olhos navegando amarelos e demoníacos na escuridão. Conhecia apenas o seu cheiro forte. Sempre fazia do cobertor a sua última e frágil fortaleza.
Um dia criou coragem e perguntou a fera, aonde voce mora? e ele disse, por enquanto não tenho parada, mas um dia precisarei de você e você vai precisar de mim, um dia vai me dar abrigo e eu te darei proteção. O menino suava frio, o lobo falava sua língua. Desesperado sempre saltava da cama, as sombras da casa olhavam-no, riam-se do seu pavor. Frequentemente esquecia os chinelos mas lembrava, em momentos lampejantes de lucidez, da importância do seu travesseiro. passou pelo banheiro e chegou ao quarto dos pais. Seu pai não abriu os olhos e murmurou com sono: o lobo estava lá? o menino respondeu que sim.
Deitou-se entre os pais e eles estavam impregnados com o cheiro daquele animal. Todos adormeceram menos ele, que ficou ouvindo o pai e a mãe gemerem de sono como se fosse um grunhido de feras, era cedo para entender que aquele também um dia seria seu destino.