Pé-na-Cova e os cupins
TIO DINO
Me suicidei, pela primeira vez, aí por volta de 1910, alguns anos antes do incêndio da Matriz. Nas outras vezes, fui solidário, talvez por tradição de família. É que temos sangue de cupins, a um comando todos se movimentam, e nosso inconsciente familiar direciona ao suicídio. Em vez do dia de fúria contra os outros, por qualquer desgosto ou fracasso, afundamos no isolamento, na autocompaixão, na culpa, na depressão e no álcool. Alguns, um dia, mais estouvados, decidem adiantar o expediente, se é que me você me entende.
Naquela primeira vez, saí escondido no cavalo de Theóphilo, tarde da noite, o laço já pronto, enrolado na borda da sela. Subi a serra e, na curva da estrada, no primeiro descanso da subida, trancei a corda de bacalhau num galho de ipê florido. Sem apear do cavalo, apertei o laço no pescoço, esporeei, o cavalo relinchou e saiu a galope, livre do cabresto e daquele peso inútil. Só senti o arranco me puxando pra trás, esperneei procurando chão, agonizei e aqui estou.
É verdade, me enforquei na curva pra assustar ou impressionar os passantes, de preferência um parente buscando por este rapaz esquisito, que lhe tinha roubado a montaria. Imagina: você vem a pé ou a cavalo, de noite, olhando o luar, ensimesmado, e topa com a imagem macabra. Eu sabia que logo vinham atrás de mim, a noite era de lua-cheia, até isso foi calculado, e era véspera do meu aniversário de vinte e um anos. Theóphilo, com certeza, ia ficar surpreso: vinha só por causa do cavalo desaparecido e encontra seu irmão caçula enforcado. Quase morreu de susto, meu corpo já estava duro, aquela língua enorme para fora, a lua serena já começava a baixar para o poente, o vento soprava, a árvore rangia e o morto se oferecia pendularmente às famintas onças da serra.
PÉ NA COVA
São quatro fechando a passagem. A mulher, os dois filhos pequenos e ele. O mulato avança, capengando, exibindo a eterna ferida na perna direita, e não arreda do caminho. Esbraveja, olhando para o chão, o bafo de pinga escapando da boca desdentada:
- Sai da frente, Pé-na-Cova!
Quase o derruba, o mulato é alto e ossudo, segue em frente sem olhar pra trás.
Ele dá meia-volta, corre pra casa pra se olhar no espelho do apartamento. Deixa, atônitos, a mulher e os filhos na rua, sem dizer nada. Não pode ser. Sente-se jovem, os cabelos compridos, a barba negra tapando o rosto, os óculos enormes, que mentira é essa? Olha firme no espelho, pronto a contestar qualquer evidência em contrário à autoimagem. Não, Pé-na-Cova é outra pessoa, ele não. Mas quem está no espelho, agora, olhem bem, é aquele quase todo grisalho, careca na tampa, as pálpebras caídas, orelhas de abano, que faz caminhada regular pelas redondezas. O velho do espelho o olha com olhar compassivo. Será que o mulato acertou? Pé-na-Cova, não, ele não se reconhece no velho do espelho.
Volta esbaforido, o coração aos pulos que nem garanhão de rodeio, para a pracinha onde deixou a mulher e os dois filhos, mas quem o recebe, cara de quem não entende nada, é a nora, os dois netos chorando de medo.
- Vovô, que foi? Que foi?
Passados uns dias, toda vez que via o mulato da ferida lembrava-se do incidente e corria de novo a olhar-se no espelho. Ele já não estava lá, quem sempre se apresentava era Pé-na-Cova. Então, se era verdade, seu tempo já não era muito, não lhe restavam muitas alegrias.
Daí, começou a proceder de modo estranho. Saía todos os finais de semana em busca de cachoeiras nas redondezas. Subia ao ponto mais alto, depois se imaginava descendo pelas barrancas e, de repente, perdendo o equilíbrio e despencando no vazio. Via-se tentando, desesperadamente, agarrar-se a cordas invisíveis ou raízes frouxas que se soltavam do barranco, porque não queria morrer. No devaneio, podia escolher se esborrachar numa pedra ou se afogar no poço da água revolta, cavado pelos séculos, sem forças para nadar. Porém, vencia sempre o atalho sem dor, a chegada ao Paraíso, o abraço da Mãe, do Velho, e um monte de gente, parentes, amigos, parceiros de projetos terrenos, todos esperando por ele:
- Finalmente você veio. Podemos terminar muitos projetos por aqui.
Os cenários variavam. Subia aos terraços dos prédios e fazia o mesmo exercício de imaginação. Como seria atravessar aquele vazio até se esborrachar no asfalto? Equilibrava-se num fio de arame esticado de um prédio a outro, uma sombrinha de frevo acima da cabeça, lá embaixo a avenida movimentada. Na metade do caminho abaixava os olhos, via a multidão esperando o desenlace, boquiaberta, mas balançava a cabeça, sorria, sabia que podia recuar e fugia da tragédia, dono da vida.
Os trens do metrô eram outra tentação, mas não era nada garantido. Podia ser apenas um choque e passar o resto da vida numa cadeira de rodas ou vegetando na cama, babando em dó menor. Mas a tristeza persistia. A tristeza era a mesma de Dezinho no alto da igreja, sufocado pelas serras. Pensava em Galã, abandonado por todos, pensava no colar de arame farpado que lhe cortou o pescoço, na corda de bacalhau que enforcou o tio-avô, no choque de um carro contra o eucalipto que acabou com o irmão. Pensava no copo de veneno, misturado com refrigerante, escolha do Padrinho. As opções eram infinitas. Bastava enturmar-se no DNA do cupinzeiro e escolher o caminho, nem precisava passar pelas estações depressivas da maioria dos parentes. Portanto, se era aquilo mesmo que queria, já sabia dos atalhos.
O VELHO
O Velho sabe de tudo. Na dúvida, tinha que perguntar ao Velho. Sobe as escadas em caracol, afasta cortina aqui, cortina ali, a cada novo patamar, pisca os olhos pra ter certeza de que não está sonhando, segue em frente, mesmo na dúvida. Alguns degraus e patamares acima, aparece o Velho, barrando a passagem, atrás dele uma porta de vidro grosso.
- Aqui você para.
- Velho, a bênção. Você também já se sentiu assim? O amanhã um vazio infinito, um eterno aperto no coração? Vontade de chorar, de colo de mãe. Só penso nisso, Velho, só paro quando estou dormindo, não aguento mais! Tem certeza de que vale a pena continuar sem ter esperança ou alegria? Preciso de uma brisa de alento, uma esperança tola qualquer para seguir vivendo. Do contrário, tenho medo de fazer aquilo.
O Velho entendia bem as razões dos que faziam aquilo, dos que se iam antes do combinado, pois, quando a Piquitita morreu, quase foi junto. Ele também tinha o problema da bebida, a vergonha de não ir trabalhar por causa da ressaca, os filhos comendo sem carne, sem mistura, arroz e feijão puro. Quando tinha apenas sopa de fubá no almoço, com ovos e couve, os filhos reclamavam, e o coração ficava pequenininho por não poder dar o que eles queriam. Vacas magérrimas. Nessa época não dava nem pra chamar os irmãos e os sobrinhos para a macarronada de domingo, o queijo ralado enobrecendo a mesa do pobre. Ajuntou tudo de ruim naquela época, mas já passou.
Hoje, o Velho vê televisão de olhos fechados, cigarro na mão. O cigarro vai queimando, ele não o leva à boca, até a cinza cair no colo, ele se assusta e volta à realidade. É que já viu tudo. Conviveu com os ricos do lugar, foi paparicado, mas nada lhe subiu à cabeça. Só os filhos, a grande responsabilidade de sua vida, balizaram seu caminho. Já pode morrer, diz, também por ver coisas da modernidade com que não concorda. Mas é só maneira de dizer. De verdade, não pode e não quer morrer, porque os filhos dependem dele. Se morrer, estanca o fio de ouro, é ele ainda quem paga a fumacinha da chaminé, como dizem. E eles, como vão fazer?
Mas pensei nisso, sim. Tive a última crise de desespero quando nasceu o Traia, quando prometi não mais beber. Ou crio os filhos ou morro de vergonha. Quando o rapaz morreu no acidente de carro, já não consegui sofrer tanto como quando da morte da Piquitita. Mas nunca mais bebi, cumpri a promessa, tudo pelos filhos. Mas sinto até hoje o cheiro da cerveja e me dá vontade de novo. Pinga, não, a porque fazia tanto mal que não compensava a euforia do álcool. A pinga me punha de cama até uma semana, os colegas vinham visitar, até o Chefe, de terno e gravata, a careca luzidia aparecendo sem aviso, não dava nem tempo de tirar o pinico de debaixo da cama.
Conservei um vício, isso sim, o cigarro, que me ajuda a passar os dias, sentado, as pernas cruzadas, pensando, pensando, às vezes nem sei em quê. Já queimei muita calça e camisa, os cigarros vão queimando, a fumaça subindo e as brasas caindo na roupa até me queimar a perna, ai, ui, eu pensando.
- Velho, você sabe de quantos na família não tiveram paciência de cumprir o mandato? Quantos partiram fora do combinado?
- Deixa ver.
Masca a língua, conta nos dedos, olhos fechados:
- Árvore da serra, torre da igreja, veneno e guaraná, desastre de carro, arame farpado. Cinco, que lembro agora, mas certeza tem mais. Se quiser falar com eles, estão ali. E aponta para cima.
Lá dentro, atrás da porta de vidro, dá pra ver que há cinco pessoas sentadas a uma mesa. Parecem conversar ou jogar cartas. Pé-na-Cova reconhece as silhuetas de Galã, Traia e do Padrinho. Os outros dois devem ser Tio Dino e Tio Dezinho, mas esses nem de foto conhece. De vez em quando, as silhuetas se fundem, e parece haver só uma pessoa. O cupinzeiro age em sintonia, abre e fecha o leque, em aparente descompasso.
- Você quer conversar com eles?
A curiosidade açula, pensa em subir os degraus que faltam e falar com eles, principalmente o Padrinho, que conheceu tão pouco, mas a coragem não vem.
- De outra vez, Velho, quem sabe! Só quero saber a razão de cada um.
O PADRINHO
O Velho começa pelo Padrinho. Ele deu uma bola de couro ao afilhado no seu primeiro aniversário, o afilhado já adorava futebol. A bola despareceu num bueiro, ele danou a chorar, porém a bola só reapareceu uns dias depois, cortada em quatro, sem a câmara de ar. Ele destampou a chorar de novo, inconsolável. O Padrinho lhe prometeu outra, mas não deu tempo. Morreu antes, tomou veneno.
No velório, chorava a parentada, erva-cidreira de calmante para todos. Na mesa da sala, o Padrinho de mãos cruzadas ao peito, os bicos dos sapatos amarrados um ao outro. O afilhado andava em volta da mesa, mudava os ângulos, mas não conseguia tirar os olhos da cara do morto, um lenço laçado, do queixo ao alto da cabeça, pra boca permanecer fechada. Na boca fechada, não entraria mosquito, mas o afilhado acreditava que o Padrinho tinha morrido era de dor de dentes.
O Velho, que adorava e protegia o irmão, disse que o Padrinho tinha adiantado o expediente porque não conseguia parar de beber. Já tinha filhos, mas não conseguia emprego por causa da bebida.
Bem que o pai tentou, lhe dava frangos de raça, índios, ele os treinava para serem galos de briga, vendia e gastava o dinheiro no botequim.
Quando viu que treinar galos de briga lhe daria mais dinheiro, demorava mais tempo com os frangos, esperava até cantarem, os pescoços pelados, rubros da cor de brasa, galos então, agressivos e violentos até com o dono. Mas qualquer um que lhe pedia de presente, lá ia ele, coração enorme, cedendo aquilo que lhe tinha custado canjiquinha, fubá, milho e carne de boi para criar. E o pai, mesmo assim, lhe dava os franguinhos pra começar tudo de novo. Pesadelo de Sísifo.
DEZINHO
Dezinho trabalha no telhado da igreja nova, a outra se incendiou em janeiro de 1914, por causa de uma vela deixada acesa na sacristia pelo sacristão substituto. Se o titular tivesse esperado até agosto, quando chegou a luz elétrica, nada disso teria acontecido. A igreja de madeira e ouro podia existir até hoje.
Dezinho sabe que, por muitos dias, o serviço parou pelas chuvas, agora estiou um pouco, é preciso recomeçar o trabalho, se puder. Dezinho não tem capacete, não tem macacão, não usa luvas e nunca tem certeza de que lhe vão pagar a semana no sábado à tarde. Está de calça de brim, remendada nos joelhos e na traseira, camisa xadrez barata e chinela de couro, que descalça às vezes pra se movimentar melhor no alto da igreja. O mundo está em guerra. Milhões estão morrendo.
Um ano depois do incêndio, começaram a construir a nova Matriz. Ele trabalhou na construção, até o dia em que pulou da torre. Mas se você perguntar à Lurica, a irmã mais nova, ela vai dizer que foi acidente, as telhas estavam escorregadias, tinha chovido muito. Ela sustentava:
- A culpa foi da Clarinha, mulher dele. Ela o tratava muito mal. Queria vida boa, mal cuidava da casa e das duas meninas. Deus me perdoe, mas falavam que ela até tinha um outro homem.
Liga aí a gravação em que ela defende o irmão e acusa a cunhada. O que dá pra entender? Entendo que se suicidou, mas o suicídio era um tabu, ninguém da família ia admitir, quanto mais a irmã caçula, que adorava o mais velho. Naquele tempo, havia até lugar separado pros suicidas nos cemitérios. Ela argumentava que, se fosse verdade, o irmão não teria sido enterrado num lugar comum, igual a qualquer cristão remido.
Quando a gravação roda, se nota que Lurica chora até hoje pelo sofrimento do irmão. Ele tinha apanhado muito do velho Dé, até botar corpo e ter tamanho para enfrentá-lo. Depois, muito novo, se casou com Clarinha, mas já não sabe se ela o ama. Briga com ele por qualquer besteira. A última briga foi pelos retratos. Ela queria tirar retrato da família, ele junto, mas como tirar retrato em dia de semana? Retrato a gente tira nos domingos ou nos feriados, dia de semana só rico é que pode, ele diz. Clarinha insiste, fica de cara amarrada, mas só briga por essa miuçalha quem não se gosta. Ela não pensa nele, não gosta dele. Só quer o minguado salário dele pra seus caprichos. O suor fedorento do sovaco quando chega da obra ela abomina:
- Fica longe de mim e das meninas. Você tá fedendo.
Dezinho gosta de cantar, todos dizem que é muito afinado, mas o violão está silencioso em casa. Às vezes, se esquece de que ela não o suporta mais e canta na bacia do banho, ela o manda calar, gritando da sala:
- Cala a boca, sua taquara rachada!
Lurica o santifica:
- Ele entrou no céu. Passou quarenta dias entrevado na cama, uma das pernas, gangrenada, foi se soltando aos poucos. Dezinho sofreu que nem Jesus Crucificado, se é que isso não é uma blasfêmia. Se tinha pecados, pagou todos depois da queda.
Hoje estiou, Dezinho tira as chinelas pra se movimentar melhor no alto da Igreja. Vai agachado, às vezes de gatinhas, olha aqui e ali, ver se dá pra continuar o serviço. Se der, tem que avisar os outros. Às vezes se levanta, esquece o que está fazendo e viaja na paisagem. Olha as matas e serras que sufocam a cidade. Dentro do coração, a tristeza está cercada pelo corpo material, não consegue sorrir. Pensa em caminhar ereto por cima do mundo, pairando acima das casas, mais alto que a tristeza.
Tem muitos caminhos: para o sul tem a Capela do Bom Jesus, para o norte a da Cruz do Monte, no meio do caminho tem a Igreja de São Francisco, para onde vai? Acima de alguma delas, poderia pairar, quem sabe até descer, rezar, encontrar consolo. A brisa de alento.
Decide-se. Do telhado da nave, ainda por cobrir, sobe à torre, descalço. Escolhe uma fileira de caibros, vai caminhando, a neblina encobre a igreja de São Francisco e, ao longe, quase não deixa ver a Capelinha da Cruz do Monte. Nunca pensou ser possível andar no vácuo, mas acha que agora vai poder.
Segue caminhando, um sorriso de criança toma conta do rosto queimado de sol, os braços abertos em forma de asa, de cruz, as mãos prontas pra iniciar um voo em direção à Cruz do Monte, toma impulso para voar, mas um escorregão foi o suficiente: todas as pontes do devaneio e do delírio se desfizeram traiçoeiramente e um corpo desceu ao chão. O mundo está em guerra, milhões estão morrendo, que importa mais um?.
GALÃ
Galã promete surpresa este ano, no dia do seu aniversário. Seus cabelos já não têm o brilho dos vinte anos, quando namorou Socorro, a gostosona da cidade. Sem medo de errar, era o casal mais bonito da região. Nos bailes, ele de terno e gravata, perfumado, abotoaduras e prendedores de gravata dourados, alto, moreno, esbelto, cabelo preto luzindo de brilhantina, o topete de astro do cinema, fumando cigarros de filtro tirados da cigarreira de prata, coisas de gente da capital.
Ela de vestido de noite preto, os seios ameaçando fugir do tomara-que-caia, os olhos azuis, dentes grandes e muito brancos, o sapato de salto alto levantando os glúteos volumosos. O casal cegava os humanos no salão de baile, como deuses dançando bolero, valsas e baladas, rumbas, rocks e twists, sucessos de Ray Conniff, Billy Vaughn, La Mer, Perfídia, Quizás Quizás e outros da moda. Não havia moça que não desejasse dançar com Galã nem rapaz que não sonhasse sonhos sem-vergonhas com Socorro. Seus olhos azuis exigiam amor, mas amor perdido, amor sem eira nem beira, amor de suicidas.
TRAIA
Traia, já que você quer saber das razões de cada um, entra no terceiro boteco da noite. Brigou com o pai há dias, mas está com o carro dele para calibrar os pneus. O irmão vai xingar minha mãe e dizer que me matei, que ela tem culpa, que foi tudo pressão de mulher. Dela, minha mãe, e de minha mulher. Conclusões dele. Será bem assim? O que é certo é que preciso de ar, preciso de conquistas, preciso de glória. Por aqui, não dá. As serras me sufocam.
Depois do acidente, o carro vai dar perda total, mas vai sobrar a placa e logo vão identificá-lo. Uma curva mal feita, o choque contra um eucalipto, a queda na barranceira, no meio do capim. Vou quebrar o pescoço, sim, mas meu corpo vai ficar quase sem marcas. Pelo menos, não vou desfigurar o rosto de vinte e um anos, bonito, apesar das espinhas.
Triste notícia para uma sexta-feira. O irmão mais velho não vai tomar cuba-libre esta noite, depois do trabalho, quando lhe contarem que morri. Ou vai? Talvez se embebede, pensando em mim. Imagino quando lhe derem a notícia no meio da noite de sexta-feira. Vou acabar com seu fim de semana! Ele vai sonhar comigo toda a noite, que era brincadeira, que eu estava fingindo, mas, ao acordar, confirmada a realidade, vai ficar sem comer até de tarde, chorando e pensando em mim. Não vai ter coragem de vir pro enterro, é covarde pra essas coisas da morte.
Em casa, vai haver choro, papai vai ficar inconsolável, cheio de culpa. Foi ele quem pediu, por terceiros, pra eu calibrar o pneu do carro, embora estivesse de mal comigo, embora soubesse que é começo da noite de uma sexta-feira, que tem gente bebendo em todos os bares e que tem festa de barraquinha por todo lado. Tentações a dar e vender. Foi uma maneira que ele arranjou de fazer as pazes comigo, mas nem falei com ele, só recebi o recado, a chave e dez reais para alguma despesa. Saí no carro, no posto não cobraram pra calibrar, então comecei a gastar tudo em pinga. Uma na Penha, outra no centro, a terceira no Chapadão. O que sobrar vai ser torrado na barraquinha de Conceição do Pará. Sei que vão ficar faltando algumas coisas pra fazer nesta vida, mas pelo menos já plantei muitas árvores, muita verdura e legume, bananeiras e sibipirunas, sabia fazer berinjela frita, já escrevi um livro e fiz um filho. Já posso ir?
- Pode. Não precisa pagar, você é gente fina. Não custa nada calibrar um pneu. Pode ir.
E ele foi, pra nunca mais voltar.
GALÃ
A surpresa: no dia do aniversário, o irmão de Galã telefona pra dizer "meus parabéns", celular desligado. Morando sozinho, só vai ser encontrado ao meio-dia, de gravata, diria um gaiato. Gravata de arame farpado, um horror, comenta o Velho. Desse jeito, é como o irmão o encontra, estirado numa velha cama de ferro, nivelada por um toco de madeira. Tiveram que arrombar a porta. No quarto, sangue por toda parte, salpicando as paredes, misturado à umidade do quarto de solteiro. Não tão diferente do tio-avô, se lembra, o que se enforcou na curva da estrada, numa noite de lua-cheia, na manhã dos seus vinte-e-um anos. Pareciam a mesma pessoa, repetindo o mesmo ato de desespero. Coisas de DNA, reflexo de cupins seguindo as ordens de um mesmo cérebro. Maus exemplos.
PÉ-NA-COVA
Pé-na-Cova desce as escadas depois do encontro com o Velho. Está convencido: apesar de já não ter ilusões, de não ter encontrado a tal brisa de alento, decidiu esperar que seu tempo se cumpra sem ruptura. Não vai copiar o mau exemplo dos cupins suicidas e partir fora do combinado, se é que você me entende.