Ascanthopédia - Parte 6 - Sombras do Jardim

Saindo da estufa, as alamedas subiam dividindo-se para lados opostos, em meandros como se fossem rios a irrigarem um vale extenso. As sombras do jardim conspiravam contra o jovem, e era por elas que se esgueirava a estranha figura em forma de mulher, que de algum modo fora despertada lá atrás. É sabido que existem plantas que evoluiriam de formas estranhas para ter uma vantagem na natureza. Plantas com formas de insetos, pássaros. Plantas com cheiros agradáveis ou fétidos, dependendo do tipo de presa que deseja atrair. Mas plantas que tomavam a forma humana, num desejo obscuro de atrair para si uma pessoa, sabe-se lá com que desejo oculto, só nas sombras de Nubelar e de outros lugares escuros e impronunciáveis de Ascantha ouviu-se falar, mesmo assim, sussurradamente.

Enki-du seguia o seu caminho, encantado e espantado demais com tudo ao seu redor, para perceber o que vinha atrás, arrastando-se em suas raízes. Estátuas antigas que se escondiam entre a vegetação, agora pareciam apontar para ele. Todas as estátuas vistas antes seguiam o curso normal de suas “vidas”. Representavam simples atos cotidianos, de pessoas deitadas na relva em piqueniques, namorando nos bancos ou subindo em árvores... Mas agora, todas pareciam “notar” a presença de Enki-du. Um sentimento desagradável tomou conta dele ao perceber que de certa forma, todas as estátuas pareciam dirigir as suas atenções para ele! Tudo de repente caiu num silêncio absurdo... Não se ouvia o farfalhar das folhas. O próprio vento fora embora. A chuva caiu forte e emudecida. Tudo pareceu se calar, para observar.

No final de um estreito caminho ladrilhado, subindo para uma parte mais alta do jardim, havia uma estranha e exuberante árvore de galhos robustos, onde um pequeno balanço oscilava preguiçosamente. Apesar do abandono do resto do jardim, ali parecera que um jardineiro compareceu todos os dias para cultivar o solo, podar e cuidar da grama e das plantas. Claro, Enki-du conhecia a história. Ali a sua mãe se matara, segundo alguns, pendurada no galho do próprio balanço. Mas ele não tinha para onde fugir. A copa da árvore o abrigaria da chuva. E ele já havia fugido por muito tempo. Na verdade, pela primeira vez desde que entrou no labirinto em forma de jardim, jamais havia se sentido seguro como se sentia ali agora. A grama embaixo da árvore era de um verde claro e luminoso, e ao contrário das demais, como dito, aquela árvore era nova e vigorosa. O tempo ali pareceu ter parado, e enquanto o jardim envelhecia, a árvore e o seu entorno permaneceram em sua glória antiga, de quando o jardim era a coisa mais linda de Limelim, mais lindo do que o próprio palácio que ele procurava enfeitar.

Enki-du sentou-se no balanço. Jogava-se para frente e para trás, observando as coisas que o cercavam, como se se perguntasse como havia ido parar ali. Já não sabia como voltar para trás, se quisesse. As estátuas que havia usado como referência por onde passava, pareciam ter mudado de lugar. Mas claro, ele preferia achar que estava enganado, e que tudo não passava de coisas da sua cabeça, tão impressionada com as estranhezas do jardim. As estátuas eram tão vividas e bem esculpidas, que era fácil julgá-las vivas. Mas, claro que estátuas não se levantam e vão errar por ai, como um pequeno e curioso filhote de cachorro. Melhor mesmo era balançar de um lado pro outro até a chuva passar. Isso talvez o fizesse se acalmar mais, e quando voltasse para os caminhos ladrilhados, as estátuas estariam lá, fazendo o que sempre fizeram nos últimos duzentos anos.

Mas, quando deu por si, sem nenhum aviso prévio, viu surgir à sua frente, rompendo a névoa da chuva, a silhueta tênue e sombria de uma mulher. Ela vinha sem pressa, com os cabelos feito folhas abraçados ao corpo. Os seus movimentos transpiravam sensualidade, inspiravam luxuria e devotada entrega. Enki-du não esboçou reação, parecia ter sido encantado, preso, num sentimento de entrega, admiração e medo. Quanto mais ela se aproximava dele, mais se distinguia os seus traços. Não, não era uma mulher, ele pensou. Era um amontoado de plantas enroladas uma nas outras, que de uma forma bizarra tentava simular a figura humana. Mas não havia importância, “ela” era tão bela...

A criatura aproximou-se dele. Abraçou-o por trás com os seus braços lodosos e frios, e pareceu embalá-lo carinhosamente através do balanço. Ele pôde ver uma ou outra pequena flor que brotava dos braços dela buscando a luz do sol, e pensou ter ouvido uma voz. Uma clara e audível voz dentro de sua mente. “Venha comigo... Venha comigo, eu vou cuidar de você...”

Desceu do balanço e seguiu pela chuva, de mãos dadas com a criatura. Enki-du não entendia o que estava acontecendo, tudo parecia um sonho ao redor dele, mas era tão agradável. A planta humana exalava um extasiante perfume, e a sua voz calava fundo dentro do peito dele. Ele iria para qualquer lugar com ela.

Ele se viu retornando para a estufa, mas nada importava mais. Algumas plantas se afastaram, abrindo uma grotesca passagem que levava até uma vala escavada no solo. Era uma terra fofa, avermelhada. Estava quente ali, e lá fora era tão frio. Viu-se na possibilidade de se deitar ali com ela. Abraçados os dois, naquela sensação de abrigo e aconchego que lhe fazia tão bem. A campina poderia esperar, quem sabe, até a chuva passar... Deitou-se então ali, naquele buraco úmido e viscoso, enquanto a planta o cobria de terra dos pés à cabeça.

London
Enviado por London em 13/08/2015
Reeditado em 19/07/2017
Código do texto: T5344627
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