ASSIM ME CONTARAM
ANTES DE LER:
Favor interagir dizendo seu palpite para o(a) assassino(a). Grato. Boa leitura.
__ Sinhá Marília!!! Oh Sinhá!!!
Era um grito que ecoava no adro da igreja de São Pedro, erguida sobre o ponto mais alto da fazenda, à vista da estrada que levava os tropeiros para as terras do ouro ou para as cerradões do sertão das Gerais. O grito era de Bernardo, o escravo, que chamava pela sua patroa que tomava a fresca na varanda da casa grande, logo abaixo da igreja. Ela ouviu e levantou-se repentinamente, com ar de superiora, que já imaginava um castigo para aquele negro que lhe atrevia gritar o nome aos quatro ventos. Abriu o leque para abanar o rosto e espantar um pouco daquele infernal calor do verão do ano de 1778. Enquanto reclamava dos gritos ouviu-se gritos de pavor vindos da senzala que ficava à direita, um pouco escondida, certamente para não quebrar a beleza do imponente casarão. Duas escravas corriam com as mãos à cabeça e pedindo “Valei-me Nossa Senhora do Rosário”.
Foi aí que Marília, esposa do poderoso coronel Junqueira percebeu que era caso de coisa séria e saiu correndo rumo à igreja. Mal chegou e já viu, no portão do pequeno muro que cerca o lugar, seu marido caído, braços estendidos, ensanguentado, tentando balbuciar algo como:
__ Foi ele! Ele me matou!
Em meio ao murmurinho e aos gritos das escravas e de outros mais que se achegaram àquela cena, sinhá Marília não conseguiu entender o nome do algoz de seu marido. Resignado estava Bernardo, que só dizia:
__ Tem jeito não sinhá, foi corte fundo.
Ela se recusava a ouvir e gritava acusações contra o escravo, que respeitosamente negava ter feito tal coisa, que não tinha motivo para isto, que gostava do senhor Junqueira... mas ela não conseguia ouvir. Foi quando, subitamente, lágrimas caíram dos seus moribundos olhos que se fechavam para a luz neste mundo. Ia-se para sempre. Marília, inconsolada, era acariciada por uma escrava que lhe tinha afeição.
Dona Rosa, zeladora da igreja contava a história com entusiasmo para este visitante que de passagem pela estrada avistara a torre da abandonada igreja, quase em ruínas, de gasta tinta e que aparentava um ar sinistro, em meio ao cerrado abandonado e alguns restos de uma construção que parecia ser extremamente suntuosa. Aliás, foi justamente o que me chamou a atenção. A igreja na verdade é a capela particular da antiga fazenda. Bastante singular por seu tamanho e sua imponência, incomum nas capelas de fazendas. Com o passar do tempo, e lá se vão já vários anos, está ela abandonada, meio que sem dono. Os herdeiros por ela não se interessam e a Igreja não tem poder sobre ela pois não consta nos registros da diocese. Exibindo rachaduras, permanece ali, no alto do morro, em meio ao cerradão como testemunha de histórias tantas, guardando em seu sombrio silêncio os corpos dos que por ali residiram, trabalharam e morreram.
Meia hora depois estava Bernardo ao tronco, recebendo chibatadas para confessar o crime que não havia cometido. A sinhá estava cega de dor e ódio, e não se dobrava à cruel castigo querendo porque querendo ouvir do negro uma confissão que ele jurava a si mesmo nunca dizer. Nem por Ana, a escrava que lhe tinha afeição, a sinhá atendera. Ela estava certa da morte provocada pelo facão do escravo, que semana anterior havia ficado de castigo por ordem do patrão, por uma tentativa de fuga. Mas por que Bernardo iria matar e dar o alarde? Não havia sangue em suas roupas, nada havia que lhe pudesse comprometer, nem mesmo esperara Junqueira falecer e já chamava pela sinhá. Não seria tão louco ao ponto de matar e deixa-lo falando. Também é verdade que não escondia em si um ar de satisfação, muito discretamente, por não ver mais o patrão que tão cruelmente o castigara. Havia sim, no dia do castigo murmurado juras de vingança. Mas era um homem incapaz de tal ato. Pelo menos era o que todos pensavam.
Junqueira estava caído ao chão, morto com um golpe de facão que lhe atingira as costas e num segundo golpe parte das artérias do pescoço, motivo pelo qual não conseguira falar o nome de seu algoz. Possuía imensa fazenda, que se perdiam no horizonte das campinas. Rico, era o maior doador de dízimos à paróquia de Nossa Senhora da Oliveira e possuía por isto, apreço do padre José Silveira, que todos os meses celebrava missa em sua capela particular, dedicada à Nossa Senhora do Carmo, santo de devoção da mãe do coronel. Dias de missa e de festa eram os dias mais animados. Junqueira e Marília recebiam os devotos com mesa farta, no adro da igreja, para onde advinham multidões de todos os povoados e vilas ao redor. A casa grande possuía um anexo aos fundos com vários aposentos, e os de mais longe eram convidados a passarem a noite na fazenda.
__Francisca, oh Francisca.
Era Ana, cochichando no ouvido da amiga de senzala que era responsável pela cozinha da casa. Ela estava ao fundo, cozinhando e cantando quando Ana se aproximou, atônita:
__ Que susto menina! O que faz aqui? Patroa mandou inventar mais comida? Tem gente chegando?
__Mais comida com certeza, mas não é por sinhá não. Ora, você não ouviu os gritos?
__ Gritos? Não! To aqui minha filha, distraída com o almoço, essa corredeira de rio que passa aqui em baixo não me deixa ouvir nada. Mas que foi?
__ Pois não é que seu Junqueira tá morto! Foi encontrado agorinha pelo Bernardo na porta da igreja. Coitado já tá no tronco e nem foi ele!
__ Minha virgem santíssima – exclamou a cozinheira levando a mão ao rosto – quem será que fez essa covardia?
E saiu correndo para ver a cena. Não sabia se se comovia mais com o corpo ao chão, ou com Bernardo no tronco. Lamentava e chorava. Junqueira não era cruel com ela, pelo contrário, havia lhe tirado das lavouras e colocado na cozinha a pedido de sua esposa. Na cozinha o trabalho era mais leve e ele sempre elogiava sua comida. Ela somente sorria...
Chegaram os soldados e retiraram o corpo do chão. Também interrogaram o escravo não encontrando sinais de culpa. Logo chegaram as mulheres dos arredores que preparavam o corpo para o sepultamento e os carpinteiros que faziam o caixão. Eram mórbidos os sons dos martelos e pregos ecoando pela fazenda quando se confeccionavam o depositário do corpo. Marilia encontrava-se na sala onde já chegavam os parentes e amigos próximos. Já se passavam das dezessete horas, oito, após o assassinato. Tudo já estava quase pronto para que o corpo fosse velado na capela. O padre já estava a caminho e as escravas já haviam banhado o corpo com ervas para que pudesse ficar exposto até que os parentes mais distantes pudessem chegar, embora não fosse esse um costume comum nas fazendas dos sertões.
__ Bernardo, toma essa água por favor. Feitor deixou eu trazer escondida da sinhá.
Ana dizia estas palavras enquanto levava à boca do escravo a água que lhe refrescava. Havia levado várias chicotadas e nas feridas lhe passaram suco de limão com pimenta. Ele ardia em dor e chorava ao escaldante sol. E dizia não ter sido ele o assassino.
__ Eu o odiava Ana, mas não o matei. Vontade nunca me faltou, mas não o matei – dizia, tendo os olhos vermelhos num misto de dor e ódio.
__ Eu sei meu irmão, eu sei.
__ E você sabe quem foi Ana? Onde você estava?
Ana franziu a testa e estranhou a pergunta de Bernardo. Ele sabia que Ana também não gostava do Junqueira, que sempre a acusava de falar demais, de contar à sua esposa os casos de amor que ele mantinha com as mulatas que eram de sua propriedade. E não eram poucas. Certo dia, Ana viu a primeira vez que o patrão amava Luíza, mulata vinda da Angola, negra formosa de corpo e que usava sua beleza para seduzir o patrão e assim esperava um tratamento sem castigos.
A delação de Ana, que era inimiga de Luíza, custou à pobre moça a perda dos dentes, quebradas pela sinhá que obrigou o marido a vendê-la imediatamente. A partir desse dia, Ana conquistou o posto de mucama particular de Marília e o ódio do coronel.