Penas de Pavão
A água quente caía forte pelo corpo da garota. As gotas ferventes escaldavam-na da cabeça aos pés, como se fosse um frango a ser depenado. Escorriam por sobre a jovem russa, arrancando cada parte desse corpo que, outrora, ela chamava de seu.
Seus verdes olhos estavam inchados e rubros. O líquido salgado que deles brotava – cacos de uma alma que, algum dia, estivera ali – empurrava para fora tudo aquilo que impedisse a mundícia interior, realizando a tarefa que apenas o chuveiro jamais seria capaz de fazer sem ajuda.
Suas pernas fraquejavam. Seus braços pendiam moles. Os membros, em suma, aparentavam ser inertes apêndices, sem nenhuma ligação direta à menina. Porém, ainda que parecessem desligados a uma rápida olhadela, uma visão menos superficial mostrava que eles não estavam desconexos do torso.
Eles estavam mortos.
E, como tudo o que fenece, eles também não resistiram ao pesado fardo que seguravam. Pouco a pouco, segundo a segundo, eles desciam. A jovem escorregou junto à enxurrada, ansiando ardentemente que, junto a ela, atravessasse o ralo e desvanecesse.
Infelizmente, não foi o que aconteceu. Já conformada com essa rejeição divina a seus desejos, vontades e escolhas, ela deitou-se no chão. Em uma pose fetal, totalmente encolhida, ela buscou sentir-se novamente no útero materno, protegida de todas as ameaças externas. Pela primeira vez desde que chegara, ela sorriu.
O cheiro vindo do ralo nauseou-a. Olhou-o. Havia cabelos longos na metade do caminho – associou-os a ela, que também estava caindo pelas metades. Ouvira que muitas desmaiavam. Ela conseguira chegar em casa, não? Era uma vitoriosa!
Por que, então, não se sentia uma?
Sentiu medo. Ele poderia estar por ali, espiando-a. O pensamento fê-la levar as mãos em direção à vulva, tentando protegê-la de uma ameaça inidentificável – que, até onde ela sabia, poderia estar em qualquer lugar, sondando-a no escuro.
Os braços dela estavam marcados. Ela podia ver os sinais impressos na própria pele por aquelas mãos ásperas, desprovidas de calor. As imagens e os sons surgiram como flashes na mente já cansada. Sombras, apertões, gritos, lamúrias e sussurros eram tudo o que eram. Levantou-se.
Imaginara a mão erguendo-se do ralo, indo em direção a ela.
Ainda que amedrontada, ergueu a cabeça, decidida. Alcançou a esponja com a mão direita e, desejosa por limpar de vez aquele execrável suplício, esfregou-se fortemente. Nada que estivesse a seu alcance escapou da catarse física a qual ela se impôs.
Braços, pernas, pescoço, seios, abdômen e nádegas: de todos arrancou a sujeira que existia – ou que imaginasse existir. A pele, avermelhada, rendia-se à razão corrompida e exposta. Já pouco sobrara do sabão em barra quando ela decidiu que purgaria os males por onde eles haviam entrado.
Quando o objeto purificador entrou em contato com a parte maculada, ela ouviu o coro angelical entoando seus mais belos cantos. O sabonete abriu espaço pela abertura – rompida e sangrenta – enquanto a aspereza da bucha causava-lhe sensações indescritíveis.
Sobressaltou-se. O que ela estava fazendo? Uma ideiazinha lampejou pela mente: “nada mais precisa fazer sentido. A lógica era uma coisa própria dos humanos”. Mas não era ela humana? A resposta atingiu-a num assalto – o corpo dela fora um objeto alheio. Ainda que por um pequeno lapso de tempo, ela havia perdido a liberdade. Havia perdido tudo.
Era menos que um verme.
Esses pensamentos a fizeram chorar. De novo. Ergueu os olhos ao teto, procurando algo que não existia. Uma coruja piou ao longe. Começara a escorregar quando brotou-lhe outro ponto de vista. Algo que não ocorrera antes. Algo diferente. Girou o registro do chuveiro. A água parou de cair. Empinou a cabeça e disse, primeiro mentalmente, depois em voz baixa. Por fim, bradou aos quatro ventos:
– EU SOU MINHA!
A frase agradou-a. A sonoridade estava perfeita. Secou-se. No quarto, vestiu o velho vestido cinza, estampado com os olhos das penas de pavão. Faria como o pavão: transformaria as toxinas em belas cores. Sussurrou elogios para a mulher no espelho, secou as lágrimas que esquecera e saiu.