O ADEVOGADO E AS MANGAS

 

Edmilson era servente de pedreiro. Fazia aproximadamente cinco anos que havia chegado de Barra do Corda, no Maranhão. De lá, depois de dois anos, trouxe o restante da família, pai, mãe, irmãos e até a avó Severina. Morava, e ainda mora, ali no Setor Santa Cruz, um antigo lixão, depois uma invasão, agora já transfigurado em cidade, ruas tortas e estreitas, feito aquelas de cidades coloniais. Verdadeira casbah, com seu arabesco urbanismo. Gostava de seu ofício de servente de pedreiro, que na época boa rola até 100 pila por dia. 
_ Melhor que quebrar coco de babaçu!
Assim dizia. Trabalhava de servente, que é um tipo de pau para toda obra do pedreiro. Que servia até para comprar cigarro e sintonizar o rádio em FM de música sertaneja. O que aqui em Goiânia não dá muito trabalho. Era bom servente de pedreiro, isso quando estava sóbrio. Certo dia tava lá no seu bairro, nas suntuosas instalações do Bar do Marrom, tomando cagibrina (aquela que matou a mãe do guarda), cerveja e matando o tempo e bola de sinuca. Tava do lado de fora do Bar. Então passou um colega, o Ernesto, com uma sacola daquelas de feira cheia de mangas abacaxi.
_ E aí Dimirso, de boa?
_ Se melhorar, piora. O que você manda?
_ Fui ali na praça e colhi essa sacola de mangas. Só que tá pesada. Não quer uma parte para você?
_ Não leva a mal, Ernesto. Mas em época de pinga eu não chupo manga!
Tá certo! Manga é fruta remosa, e é bem capaz de se misturada com pinga fazer mal. E manga não é mais de época, pois em toda parte do ano a gente acha na frutaria, não tem urgência de comer ou chupar. Mas pinga não, depende muito da época... em que a gente tem dinheiro. Mas Edimilson além servente de pedreiro e pinguço, era também um crente pentecostal intermitente, sazonal e monçônico. Crente de "época", estação ou lua, assim como a pinga que bebia. Não era muito fervoroso, era mais uma imposição da mulher. Ou uma maneira de evitar que as coisas bagunçassem muito. Um modo de não gastar dinheiro com pinga, cigarros e prostituição. Que era outro de seus "vícios". Mas por qualquer coisa descoroçoava de ser crente: final de campeonato de futebol, festa agropecuária, carnaval, copa do mundo, visita de parentes, festas de aniversário, festas juninas, romaria até Trindade (festa católica não combina com crentice) e outros motivos. Aí ficava de férias de ser crente. Certa vez arrumou um serviço, contratado por um conterrâneo seu, o Oliveira, que era mestre de obras. Passou a ganhar durante seis meses 180 reais por dia. Foi promovido. Não era mais servente, virou assentador de cerâmica e pintor de parede. E era coisa fina. Em uma casa que ficava em um condomínio horizontal de luxo, o Alphaville-Flamboyant, obra de um paulista que ali investia três milhões de reais, só na casa. O Paulista, assim virou seu nome, tinha muito dinheiro. Era de São José do Rio Preto, mas tinha seus negócios aqui em Goiás, onde resolveu instalar suas bases operacionais. Eram negócios meio excusos, envolvendo contrabando de diamante, ouro e esmeralda. Perambulava de avião por várias cidades goianas, principalmente Crixás, Campos Verdes e Santo Antônio do Rio Verde. Tinha conexões estranhas, que envolvia até traficantes indianos, com os judeus de Antuérpia e políticos citados em uma CPI... Era um sujeito forte e espigado, bem apessoado e muito branco. Ou melhor, era vermelho mediterrâneo. Muito falante e piadista. Ria-se com as histórias dos peões quando ia à obra. Com o dinheiro era liberal, pagava muito bem o pessoal da construção. E todos estavam ali é porque  o Paulista gostava deles. Pagava quizenalmente, o que para Edmilson era uma bolada reunida. Remunerava até o domingo.
_ Todo mundo tem direito de descansar, não é Oliveira?
_ É.
Respondeu timidamente o Oliveira. Edmilson trabalhou as duas primeiras semanas e recebeu a primeira bolada de notas pardas. Ele estava na sua lua evangélico-pentecostal. Mas ficou tão feliz com aqueles quase três mil reais no bolso, que foi para o distinto Bar do Marrom para comemorar. Onde ficou até quase oito horas da noite. Foi pra casa tomar banho, resolveu sair para farrear. Era sábado, e ninguém é de ferro. Chegou em casa e a mulher tava saindo para a igreja. Abraçou a Adma, sua esposa.
_ Voltou a beber! Né seu manguaçudo?
_ Só hoje minha véia. Eu recebi pagamento.
Deu para ela 1.000 reais para as despesas da casa. Adma olhou para o dinheiro e relevou a pouca fidelidade religiosa do marido. Foi para a Igreja, guardando por dentro um contentamento, que por fora aparecia como um indisfarçável mal humor. Edmilson tomou banho e vestiu a roupa de ir para igreja, domingueira, de ver Deus. Um terno mal ajambrado, dentro do qual ficava bastante sem jeito. Mas aquilo dava requinte ao seu visual. Pelo menos nisso acreditava. Foi para o salão da Maristela, onde fez unha, cabelo, barba e sombrancelha. Ficou um pitéu. Juntou-se com um amigo de sinuca, o Dimas, e caíram na boca suja da noite. Depois da meia-noite foram parar da Casa de Show e Boite da Maria Verônica, que já teve melhores dias, quando até anunciava em rádios e distribuia santinhos de mulher pelada nos cruzamentos das avenidas. Mas o negócio decaiu, a tal pondo que alcançou as possibilidades de folgança do Edmilson. Sentou-se, ocupando ele e o Dimas uma mesa. Prontamente apareceu a Maria, para conversar com eles. Eles apontaram na direção de duas moças. Elas se sentaram à mesa. 
_ Paga bebida pra gente...
_ Manda ver!
Apressou-se Edmilson. Vieram energético, água de coco, água tônica, campari e, para eles, uma garrafa de cerveja gelada. E jogaram conversa para fora.
_ E aí Gata? Qual é seu nome?
_ Eu sou a Samantha e ela é a Djeniffer.
Conversaram e riram. Conversaram e riram. Até que Samantha resolveu perguntar.
_ E qual é seu nome, meu conquistador?
Ele estacou, pensou um pouco. Tinha, como elas, de inventar um nome. Então sapecou:
_ Meu nome é Doutor... Doutor Maurício!!!
Falou como se fosse o James Bond. Queria impressionar. Era servente de pedreiro, virou assentador de cerâmica e pintor de paredes, e agora virou Doutor, e ainda mais, era um Maurício, nome de gente cheia de bufunfa. Elas, aparentemente acreditaram. Até ficaram bastante empolgadas com aquele insuspeito Doutor.
_ Hum! Que gracinha! Um doutor! Mas... doutor em que mesmo Meu Maurício.
Já tinha virado dona do Edmilson. Ele se atrapalhou, não sabia doutor em que ele próprio era. Olhou para o Dimas e ele deu com os ombros. Não era assunto dele, além do mais estava entretido com a Djeniffer, que era uma menina lá de Brasília, conforme ela tinha dito. Prostituta nunca é do lugar onde está. Isso é universal, pode ser lido em qualquer história da prostituição. Isso mesmo se ela for de fato do lugar onde está. É um arquétipo universal do ofício. Então improvisou com o tipo de doutor que mais conhecia. Estufou o peito e recostou-se no espaldar da cadeira de plástico, e então disse:
_ Eu sou é Adevogado. Dr. Adevogado Ed... não, Maurício.
Tão entusiasmado estava com o diploma, anel no dedo e com a inesperada promoção na vida profissional, que quase entregou seu verdadeiro nome. Dimas arregalou os olhos com a cara de pau do amigo, então soltou desbragada gargalhada.
_ Ui! Que fofo! Tô namorando um Adevogado.
Ela acreditou nele, e de pronto se promoveu a namorada, daqui a pouco seria a esposa, e quem sabe até a primeira-dama de Barra do Corda. E assim seguiu a noite: cheia de coisas inenarráveis. No domingo, na feira, o Dimas contou a história para o Oliveira. Edmilson passou o dia bebendo no Bar do Marrom. Na segunda atrasou meia hora para chegar ao serviço. Com a cabeça que era um oco. Seu cérebro tinha virado gelatina.  Chegou e já estava todo mundo lá. Até o Paulista, que também era Adevogado. Chegou e o Paulista já espezinhou:
_ E aí colega? Chegou atrasado!
Todo mundo riu. Ele sem entender, aquele "colega", depois aquela bronca misturada com um riso! Então olhou para todo mundo, que o cumprimentaram em uníssono:
_ Bom dia Doutor Adevogado!
Aí foi só gargalhada até pelo menos o meio dia. E a palavra que mais se ouviu era "Adevogado". Toda hora o chamavam por motivo nenhum, só para falar "Adevogado". "Feladamãe do Dimas! Contou tudo! Daqui a pouco até a Adma fica sabendo", pensou. De fato, a Adma já sabia, mas ele ainda não sabia que ela sabia. Estava ferrado. Além do mais agora tinha um apelido: Adevogado. Com o tempo até sua esposa também o chamaria de Adevogado. Às vezes até ele mesmo: "Alô, aqui é o Adevogado", dizia ao telefone celular. Mas tudo compensou, pois por pelos menos um dia foi um Adevogado, ficou orgulhoso de si, deu até vontade de ligar pro Maranhão e contar a respeito de sua recente promoção e do sucesso que fazia no "Sul".