Zé se olhou no espelho, o que Zé viu causou espantou, aquilo estava certo mesmo? Seria ele refletido? O grande Zé, amigo estimado, profissional exemplar, amante louvável? Não lhe parecia possível. Zé sorriu, e da boca que abriu, Zé não reconheceu os dentes, estavam amarelados, descuidados, não eram os dentes do Gigante Zé, ah, nobre Zé.

Zé, fidalgo contemporâneo, ficou de perfil, resolveu insistir naquilo, quem sabe de lado a verdade não aparece, o truque místico do espelho se desfaz. Parece que não Zé, ih pensando bem, olhando desse ângulo a coisa piorou, que cabelo estranho rapaz, que barba descuidada. Inconcebível, inaceitável, aquilo não era do feitio do Zé. Zé era homem decente, Zé era homem de elegância.

Zé fechou os olhos. Há de ser tudo ilusão de ótica, acontece a todo mundo, afinal, mesmo claramente distinto, Zé também estava a mercê dos males da espécie. Zé cerrou as pálpebras, respirou fundo e evocou a grandiosa imagem que tinha de si mesmo, mas ao abrir o olho Zé continuou a encarar outrem, aquela não era a feição do homem sério, chefe de família respeitado que era o Zé, futuro diretor da empresa, ia dobrar o rendimento mensal, não, aquele era o rosto de um vagal, cara de poeta, beirando a marginal. Zé resolveu mudar de estratégia, começou a piscar feroz e incessantemente, aquela loucura não podia continuar, não com ele, não com o digníssimo Zé...

Do lado de dentro do espelho, Zé, uns 20 anos mais novo, olhava para aquele engravatado com cara de idiota prepotente e perguntava o que porra ele tava fazendo refletido no seu banheiro mofado. Será que a erva viera estragada? Zé coçou a barba e resolveu deixar pra lá, pensando bem, essa noia dava um tema maneiro pra uma poesia marginal, assinada por Zé, apenas mais um qualquer.