Ascanthopédia - Parte 5 - Sombras do Jardim
E por muitos motivos haviam ficado mesmo. Enki-du entrava num mundo todo particular. Nubelar representava o seu inconsciente com os seus medos, os seus sonhos e os seus segredos. Nubelar era escuro e fundo, como aquela parte nossa que nos fala sem ouvirmos, e que talvez nos comanda sem percebermos.
A estrutura de vidro estava aberta para recebê-lo. Os raios de sol atravessavam o vidro e entravam por frestas quebradas, cintilando como reflexos difusos na água. Sons de gotas que não paravam de pingar devido à umidade, dançavam num baile estranho com plantas rasteiras de folhas largas. E uma fonte enorme surgia ao meio disso tudo, cercada por estatuas que dançavam numa roda de ciranda com ninfas e sátiros. A fonte estava seca, mas Enki-du percebera que, estranhamente, a sua forma sugeria o trajeto inverso da água como se esta se movesse de traz para frente. Mas isso guardou para si.
A estufa não pretendia ser um labirinto, ao contrário do jardim. Havia caminhos que se entrecruzavam, mas mesmo em meio à vegetação espessa, não se chegava a ficar desorientado, mas plantas medonhas, de estranhas formas, se escondiam na penumbra, como se a qualquer momento pudessem saltar contra uma vítima indefesa e podar-lhes a vida. Que seres anormais e misteriosos viveriam naquelas sombras profundas? Seria, por ventura, como nas histórias contadas? Enki-du preferiu não saber.
Concentrar-se nas belezas ocultas da estufa era uma boa estratégia de atravessá-la sem se deixar tomar pelo medo. Ela havia sido majestosa! E como havia! Árvores e plantas de todos os reinos cresceram ali nos seus melhores dias. E mesmo uma árvore de Iasperah erguia altiva em seu centro, merecedora de toda a atenção, como a rainha de todas as árvores. Enki-du nunca presenciou esse tempo, mas visualizou-os. Eram anos especiais. Governados por uma rainha especial, sua mãe. Ascantha jamais fora tão prospera e justa. E o povo nunca se esquecera disso. É preciso entender que os anos em Ascantha são diferentes, e havia mais tempo envergando-se sobre a estufa e Enki-du, do que qualquer pessoa pudesse imaginar. A infância de Enki-du sobrepujava qualquer homem velho de um planeta qualquer que não fosse Ascantha. Transferir a noção de tempo é sempre muito complicado. Podemos dizer que a infância de Enki-du, dos seus cinco aos doze anos, duraram mais do que a vida de um ancião que vivesse oito décadas.
Lá na frente, perto da saída da grande estufa, plantas estranhas se desenvolviam de maneira desorganizada. Eram espécies vasculares que cresciam torcendo-se em espiral em volta de si mesmas, tomando muitas vezes formas que lembravam pessoas em posições diversas. As folhas que pendiam dessas plantas, muitas vezes desciam até o chão, lembrando cabelos e dando a elas aparências femininas. Enki-du parou a observar uma delas, espantado com a semelhança que tinha com uma pessoa. Era extremamente semelhante a uma bela mulher, seminua oculta entre os cabelos. Chegou a cutucar aquela coisa com um pequeno de pau, para certificar-se de que as plantas não tinham capturado algum desavisado num abraço mortal. Mas era apenas uma planta...
Assim, um pé depois do outro, observando cuidadosamente cada metro quadrado, deixou definitivamente a estufa, sem intenções sinceras de voltar. Tinha ainda o jardim todo pela frente, e queria obviamente deixá-lo antes do entardecer. Mas nem tudo estava ficando para trás. Algo, ou alguém fora despertado lá dentro. A planta em forma humana seguia o jovem, camuflada entre as folhas do velho jardim...