Desolado

Desolado

Como a maioria dos homens comuns, Alfredo apostou numa vivência humilde, mas saudável ao lado de quem lhe conquistara há 22 anos. Maria das Neves, a quem chamava de Nevinha durante a maior parte do tempo. Induzida, não se sabe por quê, de repente assumiu uma postura agressiva que provocava o desencanto de Alfredo. Ele sabia e tinha consciência de que não era o melhor homem do mundo, afinal não dispunha de uma aptidão capaz de garantir uma sobrevivência digna para sua mulher e seus cinco filhos. Morava numa casa comum, de propriedade da família, mas que para tal condição, tiveram de contar com a ajuda de familiares de Nevinha e isso era motivo para ela esbanjar em alegações que pouco contribuíam para dias equilibrados entre ambos e os filhos.

Noutros tempos, quando a máquina de costura tradicional propiciava o sustento de inúmeras famílias, graças à labuta constantes das costureiras que confeccionavam roupas por encomenda, Alfredo, com a habilidade que tinha, consertava aquelas máquinas, lubrificava máquinas, comprava, reformava e revendia máquinas e isto lhe garantiu por muitos anos, o sustento de Nevinha e dos filhos. O farnel estava sempre bem abastecido, os filhos estudando, vestidos e calçados com dignidade, se ocupavam apenas das alegrias da infância pobre, mas feliz.

Naqueles tempos, Nevinha ainda não era a megera que se tornara. Alfredo todos os dias, cedo da manhã, tomava seu café, apanhava a bolsa de couro onde carregava a ferramenta e, sem lamúrias, caminha pelas ruas da cidade, procurando endereços de mulheres costureiras que conseguia nas bodegas e bares da cidade. Para conseguir aqueles endereços, Alfredo usava de uma estratégia que lhe era peculiar. Entrava na bodega ou no bar, pedia um refrigerante e a quem lhe atendia, perguntava:

- Você conhece alguma costureira que mora aqui por perto?

Via de regra obtinha a informação que lhe era bastante para que uma abordagem comercial fosse levada a efeito. Dependendo da costureira, Alfredo substituía peças, fazia limpeza e manutenção, negociava uma máquina em desuso e com isso conseguia, ao final de cada dia, a renda necessária para o sustento de sua família.

Na época em que sua atividade fluía, Alfredo, no retorno pra casa, parava na mercearia da esquina e lá, em meio aos vizinhos, tomava uns goles de cachaça, mas nada que comprometesse seu equilíbrio.

Quando compraram a casa, sua mulher já freqüentava a igreja de uma nova religião, cujos pastores pregavam a redenção e o sucesso que quem a freqüentasse. Como a aquisição da casa foi um sucesso, ficou fácil para Nevinha associar a compra no patrimônio ao fato de freqüentar a igreja da qual se tornara fervorosa defensora. Também não foi difícil convencer Alfredo a se tornar um assíduo freqüentador dos cultos religiosos e se comprometer com o pagamento do dízimo.

Na verdade, muita coisa mudou para melhor. Alfredo deixou de fumar e de beber, porém a renda não gasta com os dois moderados vícios, servia apenas para engrossar a renda do pastor Otaviano, que não se cansava de elogiar os irmãos cumpridores dos deveres religiosos.

Célere e sem pedir licença, o tempo passou e com ele chegaram as indústrias de confecção na região, tirando de Alfredo a fonte de renda que há mais de vinte anos garantiu o sustento de sua família.

Seu primogênito servia ao glorioso Exército brasileiro de onde saiam os dirigentes da nação. Nevinha orgulhava-se de Luiz Gonzaga a quem docemente chamava de “meu coronel”, enquanto Alfredo se afundava diante do malogro de sua profissão.

Durante cinco anos, o assíduo freqüentador da igreja nunca tinha negligenciado com o pagamento do dízimo, condição que lhe garantiu participar do Conselho Deliberativo da Igreja, sob as bênçãos do pastor Otaviano.

Após uma das reuniões dominicais, o pastor Otaviano chamou o irmão Alfredo para uma conversa:

- Irmão Alfredo quero falar com você porque estou enfrentando uma dificuldade. O que está acontecendo com você que há três meses não traz o seu dízimo? Você faz parte do Conselho e eu estou sem moral para cobrar o dízimo dos demais irmãos. Desculpe-me, mas eu não poderia deixar de lhe falar sobre isto, afinal a nossa glória depende de nossa oferta ao Senhor e você assumiu o compromisso diante de Deus e vai ter de cumprir. O que está acontecendo?

- Veja bem, irmão. A minha situação financeira está muito difícil. O meu ofício já não me rende o suficiente nem para o sustento da família e eu estou muito preocupado. Estava até pensando em solicitar de você uma sessão de “descarrego” para afastar essa coisa ruim que está me roubando a paz.

- Tenha calma, irmão, tudo tem um jeito. Luiz Gonzaga está ganhando um dinheirinho, não está? Fale com ele. Quem sabe ele ajude a liquidar sua dívida com a igreja.

- Com aquele, nem pensar. Até a igreja deixou de freqüentar.

- Ele está num mau caminho?

- Não, ele está no exército e até pensa em fazer um curso de cabo.

- Pois bem, meu irmão, você não pode negligenciar diante de Deus. Fale com ele. Quem sabe ele vindo aqui, recebendo as bênçãos de Deus, ele consiga colocar as duas fitinhas de cabo no braço.

- Eu já falei isso pra ele, mas você sabe, não é irmão? Com 19 anos o homem não se lembra de Deus e eu não posso nem reclamar dele. Afinal, ele parece muito comigo.

- Ele parece com você em que?

- Na idade dele, eu era muito raparigueiro.

- Não fale nisso aqui irmão. Você é um dos escolhidos por Deus e ele já lhe perdoou. Tratemos de seu atual pecado, é isso que interessa para Deus.

- Irmão, o pecado que você fala é a minha dívida com a igreja?

- Claro. Você prometeu a Deus e não está cumprindo.

- Mas como eu posso cumprir se não estou ganhando dinheiro?

- Vou marcar uma sessão coletiva de descarrego. Depois dela, vamos ver como fica a situação. Deus está sendo muito bom com você. Vai dedicar-lhe boa parte de seu Glorioso tempo. Considere isto e lembre-se: você é um dos poucos a quem não é dado o direito de ser inadimplente com Deus. Passe bem irmão e até domingo.

Cabisbaixo, Alfredo saiu da sala para encontrar Nevinha que o esperava na porta da igreja.

- E aí?

- Aí o que?

- O que o irmão Otaviano queria?

- Puxar minhas orelhas.

- O que você fez?

- Quando chegar em casa a gente conversa.

De volta pra casa, Nevinha apressava o passo, curiosa para saber o que estava acontecendo e mal chegaram em casa, autoritária, Nevinha perguntou:

- Desembucha Alfredo, o que está acontecendo?

- Eu estou inadimplente com o dízimo e o irmão Otaviano quis saber o por quê.

- Eu não estou acreditando no que eu estou ouvindo. A gente poderia está devendo ao mundo todo, menos a Deus. Você é um irresponsável. Com qual cara eu vou olhar para o irmão Otaviano, que nos tem tanta consideração? O que você anda fazendo e que eu não estou sabendo? É alguma rapariga? Fala irresponsável.

- Não me fale em rapariga. Isto é um absurdo.

- É? Quem é ela? Eu bem que desconfiava. Há dias que você não me procura. Eu sabia que tinha alguma coisa estranha. Quem é ela? Diz, fala logo.

- Nevinha, tu estás ficando maluca. Minha crença e meu salário não me permitem nem olhar para outra mulher. Eu sou um homem sério e exijo respeito.

- Está querendo enganar-me? Pensa que esqueci do dia que lhe flagrei olhando para o traseiro dessa debochada aí do lado?

- Eu não olhei. Ela é que é apresentada. Se olhei, foi desprovido de malícia.

- Além de irresponsável, é cínico.

- Não vamos brigar agora. Eu pedi ao irmão Otaviano para fazer uma sessão de “descarrego”. Quem sabe as coisas melhorem.

- Vai ter que melhorar, pois eu não vou viver com um homem caloteiro.

- Eu não sou um caloteiro, apenas estou em dificuldades que espero vencê-las. Se eu posso esperar, por que Deus não pode?

- Isto é uma blasfêmia! A igreja nada tem a ver com sua incompetência. Daqui para sábado eu vou querer o dinheiro do dízimo aqui na minha mão. Eu que vou entregar esse dinheiro ao irmão Otaviano. Domingo eu não quero chegar na igreja com a cara calçada de vergonha. Caia na luta e me traga o dinheiro até sábado.

- Pode tirar o cavalo da chuva. Se eu conseguir dinheiro suficiente para pagar o dízimo, eu mesmo irei pagar, pois quem está devendo sou eu, não é você. E tem mais: só farei isso após a sessão de “descarrego” que o irmão Otaviano prometeu. Ele tem que me ajudar. Ele é mais poderoso do que eu, fala com Deus na hora que ele quer.

- Você é também um covarde! Está querendo que o irmão Otaviano resolva seu problema.

- Êpa! Você está indo longe demais. Já me chamou de irresponsável, insinuou que sou raparigueiro e agora me chama de covarde. Alto lá!

- Olha só quem está falando! Você é tudo isto e muito mais. Homem que é homem cumpre com seus tratos e você falhou no trato com Deus. Primeiro lugar a igreja, depois o resto. Esta é lei de Deus e quem com ela não cumpre merece ser queimado no fogo do inferno.

- Escuta Nevinha, eu não quero mais discussão. Eu não estou bem. Quero esfriar a cabeça e procurar uma solução para o problema. Basta e ponto final.

- E eu onde fico nesta história toda?

- Onde você está.

- Alfredo, pensa bem: esta igreja é tudo para nós. Sem ela, o que faremos da vida?

- Nevinha, não confunda as coisas. A igreja é parte de nossa vida, mas não é tudo. Deus jamais terá coragem de me mandar para o inferno, somente porque eu não paguei três meses de dízimo. Ele está vendo a minha situação. Está vendo você e Marcelinha vendendo guloseimas nos bares da cidade para angariar recursos para nossa igreja. Deus é complacente.

- As guloseimas que minha filha eu vendemos, é uma obrigação acessória. É diferente do dízimo. Sua dívida é imperdoável.

- Que seja, mas o problema diz respeito mais a mim do que a você. Não se fala mais nisso.

Após estas últimas palavras, Alfredo saiu de casa, encerrando a discussão. Como ainda não era meio-dia, procurou a casa de um conterrâneo contemporâneo seu. Este vivia muito bem de vida, era dono de uma pequena rede de hotéis em duas cidades de seu Estado-natal. Como tinham muitos momentos comuns, Alfredo foi muito bem recebido. Falou de suas dificuldades e de suas limitações. O conterrâneo rico, o Joel, se dispôs a empregá-lo como vigia de um dos hotéis, caso ele, Alfredo, quisesse.

Como sempre acontece quando um homem se sente pressionado, Alfredo buscou uma fuga e encontrou. De volta pra casa pensava: se Nevinha fizer muita pressão, ela vai conhecer o Alfredo que ela não conhece ainda.

A semana passou e Alfredo, emburrado, nem deu bolas pra Nevinha. Ela, como todas as mulheres, sentiu a distância do marido, mas em nome de Jesus, esquecia o mal que a ele fazia.

Na sexta-feira, às 19h Alfredo voltou pra casa. Lá estavam apenas Mariana, Clemilda e Renan. Alfredo perguntou por Nevinha. Mariana a mais velha respondeu: - saiu com Marcelinha para vender flores e guloseimas. De estômago vazio, Alfredo tomou banho e deitou-se e entre pensamentos divergentes adormeceu para acordar somente perto da meia-noite, graças ao barulho das fêmeas ausentes que chegavam. Nada falou, mas demorou a dormir novamente.

No sábado, cedo da manhã, tomou o café que ele mesmo fez e saiu. Foi à luta. No final da tarde, retornou pra casa com uma pequena quantidade de produtos que conseguiu comprar, graças à venda de uma máquina de costura reformada. Trazia para o farnel, feijão, arroz, massa de milho, sal, macarrão, pão, manteiga, café, açúcar, fósforo e sabão. Lembrou-se de incluir na sesta, uma goiabada e meio quilo de queijo de manteiga que Nevinha tanto apreciava após um colóquio amoroso. Esses dois produtos, ele fez questão de expor na mesa.

Ao entrar em casa, crente que era o máximo, Alfredo foi logo interrogado por Nevinha: - Conseguiu?

- O que?

- O dinheiro para pagar o dízimo atrasado.

- Não.

- E agora?

- Agora o que?

- O que eu vou dizer ao irmão Otaviano?

- Diga que ele vá pro inferno.

- Você está possuído por Satanás. Valei-me Jesus!

Alfredo nada mais disse, mas ouviu o que não queria ouvir.

- Amanhã eu não vou à igreja com você. Eu sou pura e não ando com quem está possuído pelo demônio. Afaste-se de mim.

Alfredo nada disse, apenas ouviu.

No dia seguinte, no domingo, dito e feito. Nevinha antes do horário combinado, saiu de casa em companhia dos filhos. Sobre a mesa deixou uma garrafa de café, pão e queijo.

Alfredo comeu o queijo que ela não quis comer na noite anterior. Vestiu a roupa domingueira e se dirigiu à igreja como de costume, porém sem a companhia de Nevinha e dos filhos. Em lá chegando, ficou surpreso: Nevinha estava sentada no banco dos aflitos, aquele que fica na linha de frente, próximo ao púlpito do pastor.

Consciente de si, Alfredo ocupou o lugar de costume e esperou o irmão Otaviano iniciar a sessão de “descarrego”, que não era comum, mas que quando acontecia, abria a sessão dominical.

Surpreso o irmão Otaviano assistiu à Nevinha implorar a misericórdia de Deus tremulando os braços diante dele. Não entendeu bem, mas disfarçou. Afinal, pastor que se preza, tem que acomodar esse tipo de situação.

Na fila de trás, Alfredo sentia-se leve e solto. Surpreso e esperto, o irmão Otaviano, aproveitou a oportunidade e falou alto para a comunidade reunida:

- A irmã Maria das Neves, há mais de cinco anos que colabora com a glória de Jesus nesta comunidade e a assembléia se manifestava em bloco: - Amém Jesus!

- A irmã humilde como é e consciente da glória de Jesus – novamente a assembléia repetia: - Amém Jesus! - busca entre nós, na legião dos aflitos, um bálsamo para suas dores que deve ser ação de Satanás. Em nome de Jesus, - Amém Jesus! - eu te expulso Satanás, sai da vida de nossa irmão Maria das Neves. – Amém Jesus!

Sem abrir a boca, Alfredo ouvia as palavras do irmão Otaviano e deduzia: só tem culpa quem a assume e este não é o meu caso. Se Nevinha insiste em se apresentar como devedora, ela que pague por mim. Eu não tenho culpa se o irmão Otaviano não aceita parcelamento. Como também não tenho culpa em viver como vivo. Resta-me uma saída: mudar. Sei que não poderei competir com Luiz Gonzaga, ser cabo do exército, mas posso muito bem participar de um grupo de homens que faça parte de uma reserva que não seja apenas admirador e discípulo de Jesus, mas que entenda que a flagelação é um dos caminhos que não nos permite ver, o pecado que cometemos. Amém Jesus!

Rui Azevedo
Enviado por Rui Azevedo em 19/06/2007
Código do texto: T533480