OBRA DE OLAVO BILAC/COELHO NETO
7. O “Rato”
Vivia de esmolas num estreito e úmido quarto de estalagem, onde mal cabiam os
móveis: a cama onde jazia prostrada a moléstia, uma pequena mesa, duas velhas cadeiras e
uma arca. Acompanhava-a o filho, um rapazola de nove anos, sadio e robusto, de uma tal
viveza que todos na estalagem não o conheciam senão pela alcunha: o Rato.
Era um dos primeiros que acordavam e, ainda escuro, fazia toda a limpeza do aposento,
mudava a água nas bilhas, deixava ao alcance da mão da paralítica a cafeteira e o pão, e saía
cantarolando. Saía, porque a mãe, julgando-o ainda tenro e fraco para o trabalho e não
dispondo de recursos para manter-se, pedira um atestado ao médico que, por misericórdia a
tratava e, entregando-o ao pequeno, dissera: — Vai e fica à porta das igrejas: e aos que
passarem mostra esse papel e pede uma esmola para tua mãe.
O pequeno saiu, e, à noite, tornando à casa com algumas moedas, entregou-as à mãe;
mas, no mesmo momento, rompeu em pranto, atirando-se, soluçante, sobre a velha arca.
A paralítica, atribuindo a angústia da criança à quantia escassa que trouxera, procurou
palavras de consolo: — Não chores, meu filho. Hás de ser mais feliz amanhã; o que trouxeste
basta para passarmos o dia. Deus será por nós. Não chores.
O pequeno, porém, longe de consolar-se, afligiu-se ainda mais; e, à noite, a paralítica
que velava ouviu ainda durante algum tempo os soluços do filho. De manhã, porém, cedo,
como de costume, levantou-se, e, depois do serviço, foi beijar a mão à velha enferma, e partiu.
Era tarde, quase dez horas da noite, quando o Rato apareceu na estalagem cantarolando.
A mãe, que passara o dia cheia de cuidados, mal o viu entrar falou com certa severidade:
— Ah! Meu filho, a que horas vens? Muito deves ter esmolado para que só às dez horas
da noite voltes a casa!
O Rato, porém, risonho, beijou a mão da enferma, e logo, metendo as mãos nos bolsos,
pôs-se a tirar moedas e notas atirando tudo para cima da cama. A paralítica, sorrindo, disse:
— Então, bem te disse eu que hoje havias de ser mais feliz, meu filho...
— Sim, minha mãe, fui muito mais feliz, principalmente porque ninguém me injuriou.
— Como! Pois houve alguém que te injuriasse, filho?
— Sim, minha mãe, ontem. Como a senhora me havia ordenado, fui ficar à porta da
igreja. Quando cheguei, já havia lá muitos pobres, uns cegos, outros aleijados; meti-me entre
eles e logo começaram as injúrias, porque eu era uma criança sadia e forte que ia para ali
vadiar, quando podia estar empregando o meu tempo em alguma coisa útil. Uns mandavamme
para a escola, outros para a oficina; e, se aparecia alguém, vendo-me avançar com o papel
na mão para pedir, empurravam-me, davam-me beliscões, e um atirou-me uma bordoada às
pernas com a muleta.
“Tudo isso, porém, fazia-me rir; o que me fez chorar foi o que me disse um velho que
levava um pequeno pela mão, um pequeno do meu tamanho.”
“Quando eu lhe pedi esmola, ele olhou-me carrancudo, meteu os dedos no bolso do
paletó, tirou um níquel e ficou algum tempo a olhar-me; depois vagarosamente guardou a
moeda e, puxando o menino, disse baixinho: — Verás, vai daqui direto para a taverna... — O
pequeno, mamãe, olhou-me de tal modo, que eu senti o sangue subir-me ao rosto e as
lágrimas saltarem-me dos olhos. Vendo-me chorar, o pequeno teve pena de mim e falou ao
pai. Pararam, e eu enxugava os olhos, quando ouvi a voz do menino: — Toma! — Olhei, e vi
que ele me estendia a moeda. Estive para recusar, mas olhava-me com tanta meiguice que não
tive ânimo. Recebi-a, agradeci e guardei. Logo, porém, que os vi entrar na igreja, tirei-a do
bolso, dei-a a um velho cego que estava sentado perto de mim, e desci. Desci os degraus,
disposto a voltar para casa, mamãe, mas lembrei-me de ti, lembrei-me que nada havia em casa
e pensei em pedir trabalho em algum lugar...”
“Foi então que encontrei o Vicente com um maço de jornais, apregoando. Pedi-lhe
alguns e, fazendo como ele, fui vendendo, e com tanta facilidade, que não me ficou um só.
Ele, então, ficou de arranjar-me maior quantidade para hoje e não mentiu.”
“Passei o dia todo vendendo jornais, primeiro os da manhã, depois os da tarde; e à noite
o Vicente convidou-me para acompanhá-lo até a porta do Liceu, onde aprende, e onde quero
que mamãe me faça entrar, para que eu não ande a pedir aos outros que me ensinem a
apregoar as notícias dos jornais. Hoje ganhei mais do que ontem: e estou contente, mamãe,
porque ninguém me tomou por vadio.”
“Quando eu for mais forte, irei para uma fábrica, e tu não terás necessidades, nem
ninguém me falará mais com o desprezo com que me falou o velho que me julgou tão mal...”
A paralítica, com os olhos rasos d’água, tomou a cabecinha loura do filho junto ao colo,
e, beijando-a, disse comovidamente:
— Fizeste bem, meu filho; fizeste bem: a humilhação é a pior das afrontas. Fizeste bem,
meu filho, e eu te abençôo.