O crucifixo
Ele estava sempre lá, imóvel, no mesmo lugar, pendurado na parede, não muito alto – desnudo, suado, frio e pintado de vermelho. Poucos que por ali passavam notavam sua presença. Era mais um adorno dispensável que algo importante. E os poucos que o notavam rapidamente desviavam o olhar, quase que com medo ou vergonha, e voltavam aos seus afazeres, pateando o chão e seguindo seus caminhos. Todos menos um. Um jovem que por ali passava, ainda imberbe, sempre lhe fazia uma reverência, inclinando-se. Claro, isso já resultou em derrubar o esfregão da faxineira, e até em dar uma bundada num cavalheiro que por ali passava, mas ele não se importava. Após uma breve e desconsertada desculpa ele volvia sua atenção ao pequeno objeto de madeira e mármore afixado a sua frente, e depois seguia seu caminho. Se os transeuntes não notavam a presença do tal objeto, também faziam pouco-caso do jovem.
Uma manhã, passando por ali, sem ninguém a vista e num silêncio completo a não ser uma conversa bem distante, em outras salas, o jovem se aproximou, meio tristonho, do homem pendurado. Dentro do rapaz havia um conflito, e sofrimento tal que nunca experimentara antes. Tudo o que sentia era solidão e abandono, talvez realçados por estar completamente sozinho na sala. Bom, não completamente. Aproveitando a oportunidade da ausência de esfregões e fidalgos com os quais seu ditoso traseiro se poderia encontrar, inclinou-se diante da parede, quase sucumbindo às lágrimas que haviam ameaçado sair de seus olhos já havia semanas, talvez meses. Então aproximou-se do pequenino, mas, ao mesmo tempo, grandioso, homem de mármore e beijou-lhe os joelhos ensanguentados e puídos. Mas o que era para ter sido um toque frio em seus lábios foi, na verdade, quente, e ele sentiu em seus cabelos, durante o breve ósculo, uma leve brisa, como um suspiro. Tentando considerar se tal fenômeno havia sido algo de sua mente, ele levantou o rosto e os olhos e tocou com seus dedos trêmulos os próprios lábios. Sentiu neles algum líquido quente que provou ser vermelho. E das feridas do tal Homem pingava também o tal líquido, escorrendo por seu corpo desnudo e pela cruz da qual pendia.