Ascanthopédia - Parte 4 - Sombras do Jardim

Nubelar ficava mais abaixo, um pouco mais distante do castelo, inefável entre a bruma que descia num azul esbranquiçado e fantasmagórico. Uma estrada ladrilhada que partia do grande pátio cortava o campo gramado e levava ao seu portão principal. A chuva que caía persistia, embora fraca, trazendo uma breve cerração a cobrir o campo ao redor do castelo. Pairava uma atmosfera indizível de sonho, como num abrir e fechar de olhos ao se despertar de manhã. Nubelar parecia se levantar de outra dimensão, como se tivesse sido posto ali na planície por uma mão invisível, destoando de tudo ao redor.

Enki-du desceu lentamente até o jardim, deixava que o vento leve e fresco soprasse sobre ele, como se quisesse que este o carregasse dali. Aos poucos, muros de ciprestes gigantes e grades enferrujadas foram se revelando aos passos do menino. As grades do portão, marcadas severamente pelo tempo, mostravam uma fechadura de grandes adornos e de onde podia se divisar uma alameda muito antiga, onde as raízes das árvores romperam o chão violentamente. A alameda levava a uma grande estrutura de vidro, como uma estufa, que se erguia absoluta na praça bem à frente. Alguns vidros estavam quebrados, e galhos escapavam pelas aberturas, como prisioneiros buscando liberdade. Levando-se em conta a falta de cuidados e os anos envergados sobre ela, ainda se mantinha heroicamente de pé.

Na verdade, esta grande estufa era a grande porta de entrada de Nubelar. Antes havia sido o seu cartão de visitas. Em épocas melhores, fora o arquétipo do seu tipo em toda a Ascantha, e ainda poderia ser admirada em sua beleza, apesar do descaso e do tempo. Era leve e forte, tudo junto, e se olhada de primeira, parecia uma enorme bolha de sabão emergindo das árvores.

Aromas de ervas e flores acariciaram docemente o olfato do jovem. Nubelar exalava muitos perfumes: da terra, das folhas, da grama molhada... Assim como de suas centenas de flores e árvores que

guardara nesses longos anos. O rapaz levou a mão ao bolso onde estava a pesada chave, e viu que ela trazia inscrições semelhantes às do portão: “Num solo fértil crescem todas as esperanças” . Apesar da oxidação do ferrolho, entrou com suavidade, e parecia ela própria destrancar a sua própria fechadura.

O portão abriu com dificuldades, rangeu tão alto que parecia protestar por ter sido acordado de seu pesado sono, e Enki-du temeu acordar alguém no já distante palácio.

Ao ranger, muitos pássaros assustados revoaram dos arbustos e foram se esconder da chuva em outro lugar, outros, pousavam curiosos para observar o estranho e novo visitante. Pareciam pensar - quem, em sã consciência, poderia aqui entrar.

Enki-du sentia-se estranho... Um leve incomodo percorria-lhe o estomago... Era uma sensação toda nova, de descoberta, que jamais havia sentido antes. Isso não era de se estranhar, ele jamais havia posto os pés em outro lugar, que não fosse no seu seguro e protegido palácio. Em sua tenra juventude, ainda quando criança, temia o jardim e o bosque atrás dele, mas agora necessidades maiores governavam o seu juízo, e as coisas de criança ficavam aos poucos para trás.

O jardim o recebera, não propriamente o acolhera num abraço apertado como ele desejava. Mas escuro e frio, lançando sombras por todos os lados, e guardando ruídos escusos consigo. Cada pequena estrada em Nubelar, cada esquina, guardava uma surpresa que poderia ser agradável ou desagradável, quem poderia saber? Inegável as miríades de borboletas e de flores que povoavam Nubelar. E nas suas vielas e fontes e pequenos jardins desabrochavam tantas variedades de flores quanto as cores e combinações poderiam permitir. E cantos de pássaros e coaxares de sapos percorriam as quadras sempre infestadas de árvores e plantas das mais variadas espécies. Nubelar deve ter sido maravilhoso em sua glória! Mas, apesar de tudo isso, sombras ameaçadoras se levantavam, sons estranhos eram ouvidos, um frio congelante saia dos recônditos mais profundos do jardim. Um sussurro irritante era ouvido, palavras inaudíveis eram ditas, e às vezes, um silêncio enlouquecedor era notado. O doce cheiro de mato e de ervas pareciam querer sufocar lentamente. E as árvores pretendiam querer cercá-lo. Tudo normal, num lugar que se dividia entre luz e sombra.

A antiga estufa erguia-se absoluta adiante, alheia a tudo ao seu redor. Um gigante carrancudo de vidro a guardar o caminho. Algumas plantas haviam arrancado a porta da entrada principal, sustentando-a a alguns metros de altura, como se o tempo congelasse a sua tentativa de jogá-la pra longe. A essa visão geral, quase aterradora, ainda que Nubelar sussurrasse as suas belezas, e sugerisse os seus encantos, e afagasse os narizes mais exigentes, muitos voltariam para trás sem nem pestanejar, naquele mesmo momento. Para Enki-du as altas árvores pareciam impedir que o som exterior percorresse o jardim, e o

mundo pareceu ter ficado lá fora.

London
Enviado por London em 29/07/2015
Reeditado em 19/07/2017
Código do texto: T5327634
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