Hoje eu me mato!

Hoje ele se mata, que ninguém duvide. Jogado num sofá empoeirado, o velho Abílio, que está de aniversário, resmunga, minuto sim minuto nao: "Hoje eu me mato!"'.

Como vai se matar, ele nao sabe. Mas jura para as paredes do quartinho de pensao que lhe custa quase toda a magérrima aposentadoria que de hoje aquela "carcaça imprestável'' - em suas próprias palavras-, nao passa. Se recebesse uma visita do filho, bom, aí era negócio pra se pensar. Continuar vivendo pra que? Velhice é dor, esquecimento absoluto: aos poucos esquecer do mundo e aos poucos ser esquecido por ele.

O tempo em nada ajuda; se esquenta, dói aqui ou ali. Se esfria, dói também. Como sofre com o reumatismo, o velho Abílio! E os remédios... Cada vez mais caros. De televisão ele não gosta. Pra sair, ir no Passeio Público, na biblioteca, ou mesmo numa praça qualquer, o velho não tem força nem quem o acompanhe. Se pelo menos ainda pudesse tomar a sua cachaça... Ah! Era outra história. Até o palheirinho teve que deixar de lado. Nem trabalhar pode. Há castigo maior?, pergunta ele para as paredes, tristemente.

O rádio-relógio marca oito da noite. O pobre do velho dorme sempre as nove, sem falta. Ainda tem uma hora. "Essa coisa de aniversário... Outro pancada pra quem é velho! Sorte teve você! Tá rindo de mim, né? Loguinho to aí!'' resmunga o senil senhor, ainda sentado no sofá, olhando para um antigo retrato no qual está ao lado da há muito tempo falecida esposa. Conclui com o cáustico bordão: " Hoje eu me mato!"

Ainda no sofá, o velho Abílio começa a ficar modorrento. Logo adormece ali mesmo. Acorda uma ou duas horas depois, com uma batida na porta. Recobra a situação. Boceja, levanta e novamente rabugento, vai atender a porta.

Abre. É o dono da pensão.

- Olá, senhor Abílio... Seu filho ligou, dizendo que não poderia vir vê-lo hoje, no seu aniversário... Uma viagem de trabalho...- O senhorio percebe uma expressão triste nos olhos do velho Abílio Pigarreia e retoma.- Bem, senti-me na obrigação de ir até a padaria na esquina e comprar pelo menos um bolinho- estende um embrulho, que meio em dúvida, o senhor Abílio acaba recolhendo. - Um feliz aniversário e ...- e não sabendo o que desejar a um homem daquela idade, encerra de um jeito simples:

- E tenha uma boa noite.

O velho Abílio fecha a porta. Ainda que um pouquinho, o amago do seu ser se alumia por aquela pequena oferta, numa pouca luz que basta para afogar sua rabugice. Sente-se enternecido , mas ainda banca o mau humorado para si mesmo. E como sente um pouco de fome, e não tem restrição nenhuma sobre doces de vez em quando e adora comê-los, o velho senta no sofá e vagarosamente saboreia o bolinho, aproveitando cada pedaço como se fosse uma distinta iguaria.

Quando termina de comer, o velho Abílio tira os óculos e os coloca sobre a comoda. A dentadura ele poe num copo com água no banheiro. Depois, apaga a luz e deita. Permanece algum tempo estirado na cama, ouvindo os barulhos da cidade lá fora, provando a sensação gostosa de estar naquele quartinho, protegido do frio da noite.

Aos poucos, o velho Abílio esquece os grandes horrores e os pequenos prazeres da velhice e adormece. Hoje não vai se matar.

Quem sabe ano que vem?

R A Ribeiro
Enviado por R A Ribeiro em 28/07/2015
Reeditado em 02/09/2015
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