SEMI-ABERTO

 
 
Já morei em péssimos lugares, mas aquele indubitavelmente foi o pior deles. Na frente tinha a casa da dona, ao lado de um bar daqueles de sinuca e pinga, que era dela. Os barracos ficavam nos fundos. Passávamos por um corredor que abria para um barraco, onde morava o filho da senhoria com sua família. Estava ali esperando sua mãe morrer para se poder se mudar para a casa principal. Era filho único. Nos fundos do lote 3 barracos de 3 cômodos cada, cujas portas davam para uma varanda na frente dos barracos, que era comum às três habitações. Num barraco moravam dois irmãos nativos de Nerópolis, que entregavam leite para um laticínio, e a noite tocavam violão e cantavam música sertaneja chorando dores de amor. No outro, não me lembro. No nosso éramos 5 moradores, em três cômodos. Todos éramos estudantes. Era uma "República", mas um daqueles microestados bem pobrinhos. A parede dos fundos do barraco era o muro do quintal, que dava para um lote baldio. A parede era toda verde em decorrência de infiltrações. O que nos deixava empolados de alergia. Havia só um banheiro para as três moradias, cujo roda-pé da porta dava na altura dos joelhos. Se alguém sentasse no vaso, quem passasse via 2 pernas nuas e as calças arriadas. No corredor que dava acesso para a rua, era privada sanitária onde a penca de filhos do filho da dona fazia suas necessidades. Depois a mãe jogava um balde d'água e tudo estava resolvido. Mas não é disso que eu quero falar. O que eu quero falar se passava no bar que ficava na parte da frente. Que era um espelho do ambiente onde morávamos. A dona era uma senhora beirando os 70 anos, era viúva. Era amasiada com um rapaz que tinha menos da metade de sua idade. O bar era administrado... quer dizer, tocado por ele. Era o Valtuir. Era um maranhense baixinho, relativamente bem apessoado. Era muito divertido. Tinha um jeito estúpido e tosco de ser engraçado. Muito prestativo com a gente. Até abriu um conta para nós. Quase todos os finais de tarde, em torno de 5 horas,  ou antes, íamos para lá beber cerveja, comer torresmo e jogar sinuca, antes de começar a estudar a noite (sim, nós conseguíamos estudar um pouco embriagados). Como se vê, era um lugar muito fino. Ele bebia e jogava com a gente. Nos divertíamos com o nonsense dele. Mas tinha um problema: ele todos os dias fechava o bar às 6 horas. Tínhamos uma hora para beber e jogar sinuca. Isso nos intrigava, como era possível fechar o bar às 6 horas, praticamente a hora de começar nossa hora feliz mulamba? Levamos uns 6 meses nesse rítmo. Até que um dia, distraídos do tempo, ele pediu para a gente sair, porque tinha de fechar o distinto estabelecimento. Impensadamente, mirando numa bola 14 verde praticamente morta eu perguntei:
_ Valtuir, por que você tem que fechar o bar nesse horário, justamente quando melhora o movimento?
Ele de imediato, respondeu sem nenhum constrangimento:
_ É que tenho que tomar um ônibus coletivo lá prá Aparecidade de Goiânia...
_ Para que?
_ Eu tenho que ir para o presídio, tô no semi-aberto. Tenho que dormir no xilindró.
_...
Falou como se fosse a coisa mais natural do mundo. O cara era um presidiário. Isso quer dizer que ele cometeu algo que o sistema judiciário classificou como crime passível de pena de "restrição da liberdade".
_ O você fez homem, para ser preso?
_ Aqui ou no Maranhão?
_ Por qual você foi preso?
_ O daqui.
Esperamos, parece que ele queria falar daquilo.
_ Foi um homicídio, art. 121. Aconteceu lá na Vila Pedroso, eu tinha acabado de chegar do Maranhão. Tava num boteco jogando sinuca com um baiano lá de Correntina. Era jogo apostado. Ganhei uma nêga, e ele não quis pagar...
_ O que vocês tinham apostado?
_ Daquela vez eram as botinas e a camisa dele. Uma camisa do Vasco, e olha que eu sou Flamengo. Ele não quis pagar. Dei um tiro no feladamãe ali mesmo. Ele não pagou e eu apaguei ele.
_ Você tem revólver!!!???
Ele olhou para os lados, meio desconfiado, mesmo assim respondeu:
_ É claro que não! Eu não posso. Então eu fui preso. Culpa daquele advogado meia boca que me arrumaram. Mas no ano passado me passaram pro semi-aberto. Foi quando conheci a véia ali, e aquele estrupício do filho dela...
_ ...
Ficamos calados, não jogamos mais. Encostamos os tacos antes de terminar a partida. Afinal ele tinha que ir para a cadeia. Depois disso continuamos jogando e bebendo no lugar. Mas evitávamos a pendura. Sabe se lá os métodos que empregaria para cobrar dívidas. A partir de então quando jogávamos com ele, deixávamos ele ganhar, o que ele fazia com imenso prazer, como se estivesse matando um baiano lá de Correntina. Não sei o que ele fez no Maranhão, nem quero saber.