846-HOTEL PARADISO - Viagens
HOTEL PARADISO
PAISAGENS DA INDIA – 2ª. PARTE
Este conto é continuação do # 238 – Paisagens da Índia –
Seguiu-se uma semana de visitas e excursões pela própria Nova Deli e imediações. O último dia era, como sempre acontece em viagens programadas por agências de vigem, um dia de repouso e preparo para partida. Giuliana se afeiçoara a um casal de idosos italianos — Capitano Toma e donna Marietta — que a convidam para um derradeiro passeio: uma curta viagem a Simla, ao norte da capital.
— Simla ? Do que se trata? Fica muito longe? — Procurou se informar com simpáticos turistas.
— É uma cidade pequena situada ao norte de Nova Delhi. Está nas faldas do Himalaia e a dois mil metros de altitude. No tempo do domínio britânico, os altos funcionários e os administradores fugiam do calor do verão indiano, indo para Simla. — Donna Marietta, a mulher de Tommaso explica. — É uma cidade muito pitoresca, com muitos bangalôs e mansões construídas ao estilo colonial inglês e escocês. Você irá gostar, tenho certeza.
Disposta a aproveitar o máximo de sua viagem, aceitou o convite. Viajaram cerca de duzentos quilômetros por uma boa estrada asfaltada e chegaram cedo à cidade. Após muitas voltas pelo centro, pelas vilas e subúrbios elegantes, desembocaram numa verdadeira favela: casebres construídos de papelão, folhas de zinco enferrujadas, cobertas precariamente por pedaços de plásticos.
— Mamma mia! Parece que estamos numa favela brasileira. — Estupefata por ver o carro adentrar-se por um caminho estreito, as pessoas encostando-se às paredes para dar passagem. — Mas, que vamos fazer aqui neste local miserável?
— Vou visitar meu amigo Aldo Fiorino. — Explicou Tommaso. A esposa deu um sorriso de confiança e Giuliana se acalmou.
A viatura chegou até um pequeno espaço circular, que se poderia chamar de praça, não fosse a irregularidade do terreno, cercado de todos os lados por tabiques, cercas, paredes e muretas. Entre o bric-a-brac arquitetônico (assim Giuliana denominou o “estilo” do local), uma construção de alvenaria,de dois pavimentos, destoava do resto e se destacava pelo letreiro que encimava a porta larga de acesso: HOTEL PARADISO.
Saindo do carro, Tommaso comandou, como um soldado ordenando um ataque:
— Ecco il Fiorino! Avanti! Andiamo a mangiare.
Dio mio! A gente rodou tanto para vir comer nesta espelunca? — Pensou Giuliana, obedecendo à ordem do velho.
À porta apareceu um senhor de cabelos brancos, rosto vincado por rugas profundas, os olhos azuis e voz clara e alegre.
— Caro Capitano! Ma Che cosa fai in questo fino del mondo?
Apresentações, fortes abraços efusivos, beijos nas faces e nas bocas — um reencontro de velhos camaradas. Giuliana entrou no espírito da coisa e logo estava à vontade, conversando no vero dialetto dos italianos de Nápoles e adjacências.
Durante a refeição em que foram servidas as iguarias típicas das cantinas e trattorias napolitanas, Giuliana foi se inteirando da razão de ser daquele hotel encravado numa localidade miserável. Fiorino quase chegava às lagrimas, emocionado com o encontro. Há mais de quarenta anos que não se viam.
— Era o tempo da segunda guerra. Tommaso era o Capitão da unidade. Capitano Tommaso! Ma che capitano! A guerra no deserto da Líbia era uma confusão total, os alemães não gostavam dos italianos e nós estávamos cagando (scusami, signorina!) para eles. Rommel e as tropas italianas se separaram na batalha de El Alamein e logo fomos dominados pelo exército inglês, comandado pelo Maresciallo Montgomery.
— Foi uma catástrofe! E nem está registrado nos livros de história. — A narrativa de Fiorino era completada com explicações de Tommaso. — Fomos transferidos, como prisioneiros de guerra, para um campo de concentração em Dehra Dun, no sopé do Himalaia.
— Comemos o pão que o diabo amassou: frio, fome, um inferno. Mas tudo tem o lado bom. — O otimismo de Fiorino era insuperável. Entre uma porção de polenta e goles de bom vinho, reservado para ocasiões como aquela, Aldo e Tommaso completavam-se na narrativa.
— Aldo era um bom cozinheiro e não demorou muito que suas habilidades com panelas e caçarolas, massas e molhos especiais, o levassem para o serviço dos oficiais ingleses.
— Sim, eu vivia num regime de semi-liberdade. E, quando podia, carreava para o nosso alojamento as sobras do jantar dos oficiais. Lembra-se, Tommaso?
— Si, si, como no?
Vieram outros pratos: a pastaciuta, acompanhada de suculento molho a parmigiana e um salaminho feito pelo próprio Aldo. Giuliana saboreava de tudo e mantinha os ouvidos abertos para a história dos dois antigos companheiros de campanhas militares.
— Quando a guerra terminou, fiquei sabendo, devido à militância de meu irmão na resistência contra os alemães, estes mataram todos os meus familiares. E queimaram a casa onde nasci. Estava livre, mas distante de minha pátria. Não tive ânimo para voltar à Itália. E, além de tudo, estava gostando de uma jovem brâmane, ou hindu, como vocês queiram chamar.
Batendo palmas para o interior da casa, chamou em voz alta pela esposa. Uma linda mulher de tez escura, grandes olhos negros e alvíssimos dentes, vestida em típica indumentária hindu, chegou até eles. Com as mãos juntas à altura do colo, fez saudação, inclinando-se perante cada um dos visitantes. Acompanhavam-na os três filhos: duas mocinhas e um rapaz. Todos tipicamente brâmanes, e seguindo a mãe nos cumprimentos.
— Ecco! Questa é mia famiglia! Venham, sentem-se aqui conosco. — Aldo não escondia o orgulho por sua esposa e pelos filhos.
Tommaso bateu palmas, sua forma de saudar a família do amigo de tantos anos. Giuliana e Marietta seguiram-no na saudação efusiva. E voltaram à comida, à conversa, agora com a participação da esposa e dos filhos de Aldo, falavam perfeitamente a língua italiana. É bem engraçado esses hindus falando italiano. — Pensou Giuliana.
Tomado de entusiasmo, que crescia a cada copo de vinho, Aldo explicou o que nem precisaria ser explicado:
— Como vocês vêem, isto aqui não é um hotel. Mas é, veramente, o meu paraíso.
ANTONIO ROQUE GOBBO —
BELO HORIZONTE, 27/AGOSTO/2003
Conto # 846 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS