Vida Caricata, capítulo IV: A esmola é muita, desconfie.
Acordei do jeito mais feliz dos últimos dias. Ter uma menina dormindo na cama ao lado, só a ansiedade de imaginar o que ela realmente queria que acontecesse entre a gente já me fazia ficar excitado até demais.
Então Helena, que aparentemente já tinha acordado antes, estava sentada na cama, quando seu celular tocou:
-Nossa, a Nicolly!
-Nicolly?- Pensei comigo mesmo, enquanto ela atendia e começava a falar com ela. Lembrei quase instantaneamente, uma menina loira, cabelos longos, olhos azuis e gostosa pra idade, sem dúvida. A primeira menina que fez eu virar tarado, inclusive. Malditos hormônios, desde cedo eu disputava ela com um menino Vitor, amigo meu. Só não brigávamos por isso por sabermos que ela era uma utopia pra nós dois. Era filha da dona da escola que a gente estudava, era popular pra cacete, impossível. Ela dava umas indiretas pra mim até, mas eu não podia levar a sério. Viraria um suicida assim que me decepcionasse, era novo demais pra aguentar.
Será que significaria ainda alguma coisa?
-Ei Felipe, ela quer saber se pode vir te visitar, eu já contei pra ela que eu tô aqui e vou falar o endereço. Que tal?
-Bom saber! Faz tempo que não falo com ela, pensei que ela nem fosse lembrar de mim.
-Então tá marcado. Ela vem aqui hoje mais tarde.
-Beleza.
Passaram alguns minutos, e a Helena começou a puxar assunto:
-E aí Felipe, como anda a vida? Você tem previsão de saída daqui?
-Tudo bem, tava na rotina normal antes daqui, indo pra escola, ouvindo música, tocando... e ficando na internet. Nada muito diferente.
-Que escola você estuda agora? E tocando? Que legal, não sabia. Que instrumento?
-No Jácomo, desde a oitava série. E toco bateria, tô querendo também aprender teclado mais pra frente.
-Legal, quero ver você tocando quando você sair daqui.
Assim que terminou de falar, ela sorriu. E olhar para ela me trazia um conforto, uma esperança que tudo podia voltar ao normal. Voltar... Nostalgia... Cada vez mais eu pareço um museu. Memória ótima, porque sempre acho que o passado valeu mais a pena que o presente. Eu realmente preciso me policiar.
-Falando em música-Emendei o assunto-E você? Sabe tocar? Curte que músicas?
-Não, não toco nada. E bom, ouço rock, pop, eletrônica...
De repente, alguém bate na porta.
Era a mesma funcionária do hospital, a tal Mayara.
-Seu almoço, guri.
Guri?
E então ela deixou uma bandeja, dessa vez com um prato a mais para a Helena e foi embora.
-Guri? Jeito estranho de chamar um paciente no hospital...
-Pois é, também estranhei.
Aliás, estranhei mais do que parece. Essa Mayara me lembrava uma ex-colega de classe, com o mesmo nome, e que me chamava de guri. Se ela fosse mais jovem, eu teria certeza que era ela... Mas se ela tivesse minha idade, ela nem ia trabalhar num hospital ainda. Então por quê? Por que ela me chamou diferente dessa vez? Essa Mayara do hospital... Ela não tinha como me reconhecer.
-Enfim né, melhor comer do que perder tempo pensando e deixar esfriar.
Dessa vez, meu prato tinha batata cozida, macarrão...e rúcula. Droga, odeio verdura. O prato da Helena era igual, e diferente de mim, ela ficou muito satisfeita. Além disso, tinha dois copos com suco de laranja.
Comi tudo, deixando a rúcula. Não queria ter que passar vergonha, mas queria menos ainda comer um troço ruim desses.
-Ué, você vai deixar de comer isso?
-É, eu não gosto de verdura nenhuma.
-Nossa, deve fazer falta... nada saudável isso.
Senti uma preocupação séria por trás disso.
-Bom, acabei tudo. Vou guardar a bandeja.
Então ela viu a sacola com mangás e livros que o Mauro trouxe. Já tinha até esquecido de ver quais são.
-Nossa, o que tem aqui? Posso ver?
-Bom, tem livros e mangás, o Mauro que trouxe... Ainda não sei quais são, então dá pra aproveitar pra descobrir.
E então ela tirou o primeiro mangá. Highschool DxD... fudeu.
-Nossa, isso eu não esperava. Decepção, hein?-Ela falou com um tom sarcástico, mas dava pra sacar que era verdade.
Então viu outro mangá, Sora No Otoshimono. Uma rápida folheada, e ela concluiu:
-Nossa, ninguém merece. Você só pensa em putaria? Tá diferente hein moleque.
E então, ela puxou o último dos mangás, Ano Hana.
-Esse... Parece ser diferente. E melhor... Posso ler?
Conheci ele pelo anime, e já sabia que ela querer ler justo esse era no mínimo uma coincidência do destino. Menma... A Helena. Ela é minha Menma. Desde sempre. E talvez... para sempre.
-Pode... foi meu anime favorito, talvez você descubra por quê.
-Legal. Vamos ver, tem mais dois livros aqui...-Então ela tira O Estrangeiro, do Albert Camus.
-Nossa, um livro meu! Ele passou em casa pra pegar. Meu livro favorito.
-Vou querer ler depois... você também deixa?
-Deixo. Tá querendo saber bastante de mim, hein?-Pela primeira vez, eu tento uma indireta convencida. Talvez eu consiga ver se ela quer mesmo alguma coisa com isso.
-É, verdade, né...-Voz baixa, olhando pro lado, rosto corado, fala pausada...Touché.
Hora do último livro. Sidarta, de Herman Hesse.
-Nossa, um livro sobre Buda?
-É, eu me interesso muito por budismo. E esse livro é muito bom, não quero perder de jeito nenhum.
-Mais um livro que eu quero ler, então.
E no fundo da sacola, não pode ser...
-MEU NINTENDO 3DS!!!
-...
-Nossa, desculpa. Não sei porque eu ainda fico tão animado.
Então eu vi que ele tinha o Pokémon Omega Ruby nele, e o carregador. Vou poder jogar agora, assim o tempo vai passar muito mais tranquilo.
-Eu não acredito nisso...
Ligo o 3DS. Começo a jogar um pouco, mas logo batem na porta. A Helena vai abrir.
Uma menina baixa, loira, peituda... Nicolly.
-Orneeeelass!!! Você já tá melhor?
Bom, agora sim né, duas meninas e eu num quarto... Tá, preciso me controlar.
-Tô, que bom ver você! Quanto tempo!
E ela veio me abraçar. Crueldade, agora que eu não me seguro de jeito nenhum. Dei um beijo na bochecha dela, e já foi bom o suficiente pra eu querer mais. Muito mais.
-Oi, Helena! Tudo bem?
-Tudo sim.
-Nossa, há quanto tempo a gente não se reunia... Mas somos amigos desde o Pré III. Quem diria, o tempo passa rápido.
-Desde o Pré III? Podia jurar que conhecia o Felipe desde a 3ª série...
-Pois é, e parece que você também esqueceu que... Ah, deixa pra lá.
-O quê? Fala, sua chata!-A Helena falava isso enquanto dava uns tapas nela, no cotovelo, que a Nicolly usava pra defender.
-Vai ficar na curiosidade mesmo, mocinha, Ou vai lembrar, ou descobrir sozinha... bem fácil. Não vai demorar.
-Mas que merda, viu! Você sabe o que é, Felipe?
-Não, não faço a menor ideia, Helena... Desculpa.
-Que droga.-Agora a cara de chateada dela me incomodou, mas ver elas duas deitadas uma pertinho da outra... Melhor visão pra minha mente suja. Fico com o rosto vermelho.
-É, você vai saber bem rápido...-Nisso, a Nicolly olhou pra mim com um sorriso malicioso.
Parece que minha vida vai ficar muito mais interessante a partir de hoje.