João do corre

Vinte e uma e cinquenta e nove. A claridade ainda atrapalha. João Carlos, camiseta encardida do Santos, calça amarrada com barbante, disfarça, olhando para a tela e apertando botões. Vinte e duas em ponto. Os monitores desligam, as fortes luzes se apagam e o barulho amedrontador de trava elétrica impõe seus duros bloqueadores às portas de entrada. Na rua, quase nenhum movimento. As exceções representam baixo risco: uma jovem esperando o ônibus e, mais ao fundo, um casal de namorados em um dos bancos da praça. Basta ser discreto, sem barulho, nem movimentos chamativos. Algo que dificulta mais do que o esperado a tarefa de trazer o banco almofadado de três lugares para um lugar mais discreto. Posiciona o móvel em frente a saída do elevador de cadeirantes. Ao lado existe uma grande chapa de aço com um telefone e cartaz com instruções. Ele está convicto de que ninguém que passar ali pelo lado de fora irá notar sua presença. A escuridão é confortável à vista. Esparrama o corpo no banco e suspira. Fecha os olhos. Abre-os, segundos depois. Inesperadamente, uma conversa alta vai se aproximando. Risadas, piadas e um palavrão de alguém que não gostou da brincadeira. Jovens indo embora do bar ou da lanchonete, muito provavelmente. Um carro em alta velocidade violenta a tranquilidade da noite logo em seguida. Será possível dormir com todo esse barulho? Na sala seguinte, depois da porta giratória, João nota uma luminária ao lado de um bebedouro, cujo azul da água parece chamá-lo para matar a sede. Ele não pensa duas vezes: abre uma das janelas que - tinha observado mais cedo - dá para o corredor, certifica-se de que é possível passar pela abertura, anda alguns passos e entra por outra janela. Do lado do bebedouro, as letras vermelhas em fundo metálico da placa pregada à porta advertem: acesso restrito a funcionários. Felizmente os copos estão do lado do galão, o que dispensa o trabalho de verificar se aquela porta com aviso estava trancada e evita a molhadeira desnecessária de quando se tenta beber direto da torneirinha. Quatro copos. Bebeu primeiro e pensou depois. E se der vontade de urinar, João? Mais um trabalho. Não precisava de todo esse volume! Durante os goles, pensa que o carpete daquela sala pode não ser tão confortável quanto o banco almofadado, mas compensa, por ficar mais distante da rua, ou seja, o volume do barulho de fora provavelmente será menor. João estará protegido por duas portas de vidro. E, pensando bem, examinando melhor o ambiente, quem afinal precisa de carpete quando estão disponíveis várias cadeiras? Veja! Logo ali no outro lado, um belo sofá! Carpete vai servir depois para o João andar descalço nele. Não ficou em pé nem mais dois minutos: deitou no sofá e apagou.

* * *

Ubatuba! Baratinho! Também pudera, quem tem coragem de ir em julho? Mas no tempo das vacas magras, queridos, vale a pena arriscar, com certeza! Que beleza, o cara da excursão tem uma letra horrível! Isso aqui é um quatro ou um nove? E esse outro? Um? Dois? É um tracinho ou uma volta? A moça que estava aqui no ponto embarcou há cinco minutos. Vi que ela leu também e anotou. Se eu estivesse aqui antes, podia ter perguntado... O Tiago tá lá no balcão, falando ao telefone, nem dá pra chamar aqui pra me ajudar a decifrar. Foto linda e letra horrível. Ficou uma comédia esse cartaz. Jesus! Jesus! Por falar em comédia... o que é aquilo? Um cara... dentro da agência? Ah, meu Deus, será que ficou preso? Li no jornal sobre um caso assim semanas atrás. Aconteceu na capital: um cliente foi sacar dinheiro, acabou estourando o horário, ficou preso na área dos caixas eletrônicos, chamou polícia, bombeiros, o gerente, mas ninguém resolveu o problema e ele foi obrigado a dormir lá até as portas destravarem na manhã seguinte. E olha só: já passa das dez! Ele agora arrastando banco, será que vai tentar pular? Vai quebrar a porta de vidro? Cliente preso ou bandido em ação? Andarilho? Um bêbado? Um louco? Universitário fazendo gracinha? Não... tá meio velho pra ser alguém que ainda vive às custas dos pais... E mal vestido também. Uns meninos vão passar em frente, vamos ver. Nada. Não pediu socorro. Que estranho! Foi lá prum canto que não dá para ver daqui. "Pati, vem me ajudar, por favor?". Mas ora! Vão catar coquinho na descida! Isso é hora de chegar cliente? Não que ele não possa atender sozinho, mas é que ainda está no telefone. Não é a namorada. É cliente fazendo pedido, acreditem! Um folgado que sempre pede coisas para o Tiago entregar na casa dele quando vai embora. É caminho. O cara é folgado e o Tiago é um tonto.

Depois de atender os dois meninos que procuravam desesperadamente um maço de cigarros, volto para perto da agência, ver se o sujeito ainda estava lá. "Ti, já volto. Vou ver uma coisa". Tiago pediu: "não demora, hein? Cê sabe que eu não gosto de ficar sozinho aqui". É um cagão, mesmo... Por isso nem comentei nada sobre o que aconteceu na agência, já ia querer ligar pra polícia. E antes de fazer qualquer coisa, quero ver se descubro o que diabos aconteceu. Daqui da calçada, não tão perto para não ser notada, vejo que o homem não está lá. Será que foi embora? Não acredito! Não acredito! Como é que... ah, a janelinha... aberta igual uma boca de sogra! Mas vê se pode a cena! O cidadão puxando um ronco, todo pachá no sofá da agência! Aquele mesmo onde outro dia eu negociei com a Claudia (Deus abençoe a Claudinha!) o reparcelamento do empréstimo. É mesmo o local dos acontecimentos aquele lugarzinho: tem formato de sofá, mas exerce papel de divã. Agora servindo de babador para o sujeito de boca aberta! "Pati!". Nem dez minutos e o Tiago já está com saudade... ô saco! Boa noite de sono, Genival! Aproveita o sofá, deve ser melhor que o da sua casa.

A única coisa legal de trabalhar aqui na conveniência é a máquina de café espresso. O Benedito é meio sistemático, mas deixa os funcionários consumirem da máquina à vontade. Sempre bebo uma xícara antes de ir embora. Agora, o Tiago? Aquilo não existe! Café toda hora! Diz que é por causa do sono. E mesmo assim, tem vez que "pesca". É divertido, fico olhando ele de longe. Parece um zumbi daqueles filmes, com os olhinhos sendo vencidos pelo cansaço. De repente, cai a cabeça, ele assusta e volta à posição inicial na cadeira do caixa. Uma vez meteu a testa no vidro. Eu ri até acabar o expediente. Ele me xingou e disse que se eu tivesse dois empregos não ia achar tão engraçado assim. Pedi desculpa pra ele, mas lembro sempre. É uma praga! Saio de mansinho pra rir lá fora, ou no banheiro mesmo. Uma noite, o Ti me pegou rindo no banheiro e pensou que era esse o jeito que eu reagia quando finalmente conseguia fazer cocô. "É grande, Pati? Dá-lhe Activia, hein?". Eu apelo, dou uns tapas naquele sem graça. "Ah, mas rir quando eu bato a testa no vidro, aí pode?". Coitado... o Ti é bonzinho. Esforçado. Eu gosto dele. Tô pensando agora durante o cafezinho da saída, se pego o circular ou se já fico direto, espero até as nove pra comprar as blusas que a minha mãe pediu. Ah, quer saber? Compro no sábado. Dá pra esperar. Vou dormir um pouco. Seis e quinze passa o próximo. Aproveito para ver de novo o cartaz da excursão e ver se anotei direito o telefone. E... não é que o dorminhoco da agência tá saindo? Não pode ser! Onde é que ele estava? Não posso perder essa. Perco o ônibus, mas não perco a resposta! Quero saber quem é esse homem. O duro é que ainda não tem muita gente no centro, fica mais fácil perceber que está sendo seguido. Deixo ele se distanciar bem. Nunca olha pra trás, felizmente. É como um insatisfeito que estivesse indo embora de uma cidade, que não gosta e não faz questão alguma de voltar os olhos para onde passou. Não por medo de se arrepender, mas por não gostar nada, nada mesmo dali. Fico numa distância de cerca de um quarteirão. E quando ele dobra a esquina, corro. Esqueço que estou cansada. Qual é a desse sujeito, afinal?

Nove quadras depois, abre o portãozinho branco de madeira, com diversas tábuas quebradas e entra num casebre sem acabamento. Escuto uma conversa. Estou longe, mas entendo cada palavra, porque é voz de uma mulher que grita.

- Onde é que você tava, hein ?

- ...

- Fala, João Carlos!

- ...

- Fala, "mundiça"!

- ...

- Vai falar ou tenho que te bater?

- Eu tava experimentando o banco!

A discussão continuou. Mas não consegui acompanhar porque me detive nesta frase. Ele estava experimentando o banco! Para ela pode ter significado banco de praça. E para ele deve ter sido melhor mesmo que ela tenha entendido assim.

João Carlos, este é o nome do hóspede, conseguiu dormir por lá mais três noites sem ser perturbado. Na quarta, foi expulso da pior forma possível. Já de madrugada, bandidos invadiram a agência e, na parte da frente, estouraram o caixa eletrônico. Gritei muito alto, tamanho era meu pavor. Tiago desmaiou. Além de cagão é uma moça! Minutos depois do estrondo, bolsas com dinheiro já dentro do Corolla branco e o carro indo embora a milhão. Sobrou só fumaça. E da fumaça pulou João Carlos, desesperado. Surgiu da fumaça e sumiu no mundo.