843-TIO ARMANDO E CHARNATA-Memórias do autor

TIO ARMANDO E CHARNATA

- Toninho, vai chamar Tio Armando, que o almoço tá na mesa!

Corre Toninho atravessando o Jardim Novo, rumo à alfaiataria onde trabalha Tio Armando.

- Puxa, todo dia é a mesma coisa! - caminha apressado pensando Toninho – Todo dia o almoço fica pronto às 11 horas, e todo dia tem que chamar o Tio.

Na pressa, nem percebeu Charnata, o rachador de lenha, que trabalhava ao lado do portão de entrada da casa. Suado e sujo, descendo o machado sobre as pequenas toras de madeira e desmanchando-as em achas e lascas apropriadas para o fogão da cozinha.

É um tipo esse Charnata: grandalhão, tem quase dois metros, forte, seus braços, tórax, pernas são pura musculatura. Idade indefinida: tanto pode ter 30 como 50 anos, ninguém se preocupa em adivinhar. Vive de rachar lenha, o que lhe proporciona exercício diário e manutenção de seu físico avantajado. Por força do ofício e por desmazelo anda sempre sujo, a calça rasgada nas bainhas, descalço sempre. Ao trabalhar, tira a camisa e fica com o dorso exposto, o suor escorrendo desde a testa, nuca abaixo e molhando o cós da calça. Usa o machado com vigor e maestria, cada machadada fende o tronco em dois. Para os troncos mais grossos usa uma cunha de metal que multiplica o efeito da machadada. E a cada vez que desce o machado sobre a tora acompanha o movimento um sonoro “Uáaaa!”, e então o ar se enche de sons, o machado sobre a lenha, os gritos do Charnata, a lenha rachada sendo jogada para os lados. O chão fica coalhado de farpas e gravetos, sobre os quais Charnata anda, pula, afia o machado, separa os pedaços já rachados.

Charnata é isto mesmo: uma barulhenta e imunda máquina de rachar lenha. Pouco fala e só resmunga para combinar o serviço, não dá bom dia nem até amanhã nem obrigado. Além de sujo, sem educação.

Hora de almoço. Na cozinha a mesa é forrada com a toalha, pratos e talheres são colocados, as cadeiras arrumadas ao redor. Dona Maria chama Seu Pedro, ocupado como sempre, em sua pequena oficina de marceneiro no fundo do quintal. Prepara o prato para o Charnata, antes de colocar à mesa a bacia de salada, as travessas e panelas com comida.

- Senta aí, Pedro, enquanto preparo o prato pro Charnata.

Dona Maria rapidamente coloca de tudo um pouco num prato fundo: sobre o arroz com feijão, carne e chuchu picadinho, uma porção avantajada de salada de alface.

Leva o prato feito para Charnata, que interrompe seu trabalho. Senta-se numa tora e começa a revolver a comida, procurando por debaixo da salada o arroz e o feijão. Não gosta de salada nem de legumes, sua preferência é arroz, feijão, farinha e carne.

Conversando animado com Toninho, chega Tio Armando. Solteirão, sempre morou com a irmã e o cunhado em harmoniosa convivência. Educado e cordial, tem sempre uma palavra amiga, um conselho, um sorriso para todos. Alto, muito loiro, olhos claros, elegante, o porte garboso de ex-militar, sua figura impressiona até mesmo as pessoas com as quais lida diariamente, e é modelo para os sobrinhos e amigos mais jovens. Um verdadeiro gentleman.

No que vê Charnata esgravatando seu prato, dirige-lhe um cumprimento apropriado ao momento:

- E aí, Charnata, passando bem, hein?

E o Charnata, com a falta de educação que lhe é peculiar:

¬- Qual o quê, sô! Desde quando cumê verde é passá bem, seu fio duma puta!

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 05.02.2000

Conto # 813 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 18/07/2015
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