NUM UNGUENTO DE DIGNIDADE
Ainda era muito cedo quando cruzei a quatro rodas aquele meio fio tumultuado, mal delineado, dentre buracos de asfalto roto, areias movediças e derrapantes, arbustos ceifados pela seca, montanhas de lixo, novas ciclovias velhas, desbotadas, então ocupadas por uma fileira de cansadas carroças de reciclagem que despertavam depois do sereno da noite alta para , enfim, seguirem pela labuta do tempo interminável; tudo entremeado por arredores sociais que milagrosamente acordavam como se aguardassem pelo alívio dos remendos intangíveis descidos do céu, qual unguentos de sol chegando, à vida que de novo re-alvorecia.
De repente ele surgiu de lá de dentro, parou ali, no asfalto a esmo, e me fitou com olhar tão profundo e decidido que senti sua agudeza doer dentro da minha emoção.
Tinha tomado banho e tal eu logo pude perceber pelo seu aspecto bem molhado e bem arrumado.
Estava frio e pensei que pudesse se resfriar naquele sereno.
Em frações imperceptíveis dum tempo incontável, ali, tão paradoxalmente, desfrutava ele da dignidade sortuda de ser algo supra- humano.
Já estava senil, se arrastava na matéria sofrida, mas marcava seu território com a precisão duma juventude aceleradamente roubada do seu tempo.
Senti que mesmo em silêncio me gritava histórias dali.
Assim que passei por ele, esboçou um latido fanho e doente, rosnou baixo sem sucesso e logo se acalmou.
Combalido na sua aparência sofrível, ele me contou com os olhos um breve relato do surreal do seu derredor, todavia, escolhi levar comigo apenas a lembrança da sua elegância digna, persistente na postura impecável, e que carregava sua gravatinha de algodão colorido, engomada com afinco, ali externada no seu pescoço trêmulo e de pelos finos, já bem desnutridos.
Ah, aquela gravatinha era o melhor da sua história...
Alguém, de capricho do tamanho do mundo, nele deixava seu unguento de amor e respeito à sua dignidade de existir.
Tem cenas que nos arrepiam os sentidos do sentido do todo, ainda que seja dum todo anônimo, irracional e incompreensível à qualquer racionalidade.
Em meio às tantas mortes aparentes, ainda nos é possível encontrar tons vibrantes de vida íntima.