Vó Nelinha
Meus primos contaram que Vó Nelinha tinha fechado a tampa do fogão com a chama ainda acesa, enquanto fazia o almoço. Ficaram assustados e a notícia correu por toda a família. No final de semana fui visita-la: como sempre, um bolo de cenoura com cobertura de chocolate me esperava, caprichosamente disposto num belo prato, sobre a toalha com biquinhos de crochê. Era o mesmo cuja receita havia pedido a ela ainda criança, oito ou nove anos, encantada que ficara com a primeira mordida naquela massa fofa e de cor tão bonita.
Enquanto tomávamos tranquilamente seu delicioso café de coador (cujo preparo também me ensinara – um copo de água para uma colher bem cheia de pó, mas bem cheia mesmo, viu?), Vó Nelinha perguntava dos meus pais, comentava alegremente sobre a gravidez de uma de minhas primas e me contava sobre a linda missa do domingo anterior – ao mesmo tempo em que Shang, o pequinês, remoía seu mau humor deitado sobre o capacho da cozinha. Ela era a única pessoa a quem aquele pequeno ser estressado, de dentes de fora, obedecia e demonstrava amor.
Perguntei-lhe sobre o incidente do fogão, ao qual ela respondeu com seu sorriso característico que se estendia também por seus pequenos olhos azuis: “ah, Tina, deu um branco, sabe?” E ambas gargalhamos. Saí de lá com um generoso naco de bolo num pratinho de porcelana florida e a sensação de que Vó Nelinha estava melhor que nunca.
Mas a sensação não durou muito: no mês seguinte, Vó Nelinha continuou aprontando. Saiu um dia, com suas perninhas fortes e espertas, dizendo à filha que vinha nos visitar – caminho que ela percorria de olhos fechados - mas perdeu-se no bairro. Noutro dia, deu um de seus analgésicos para o cachorro, pois cismou que ele estava com dor de barriga: tomado o comprimido, pois que vinha das mãos de sua preciosa dona, o cão passou o dia gemendo. Nem rosnava para as pessoas, de tão prostrado que ficou. Quando advertida, Vó Nelinha dizia não se lembrar do ocorrido, usando a frase que havia se tornado seu bordão: deu um branco, filha!
Passei alguns meses fora da cidade terminando um curso. Tinha notícias esporádicas de Vó Nelinha, mas quando voltei a situação havia se tornado crítica. Não podiam deixa-la um minuto sozinha, pois saia com Shang a tiracolo (às vezes dentro da sacola de feira) alegando os mais variados destinos: ia à missa, à casa da tia Noêmia, visitar o Padre Moura, tomar chá com dona Clara. Algumas vezes a pegavam já na esquina, com roupas inadequadas e sujas – ela, que era nosso exemplo de capricho e asseio.
Mas em nossas visitas ela fazia questão de ficar em casa. Sempre recebia a todos nós com grande alegria. Beijos estralados, perguntava genericamente dos familiares, mas era patente que não nos reconhecia. Uma vez chegou a me dizer: “Mas quem é você, mesmo?” - "Tina, vó”, respondi, com um misto de divertimento e tristeza. “Tina! Ah claro, da Celeste e do Geraldo, não é?”. Não era. Mas eu concordava. “Hoje é seu aniversário?”, disparou certa vez. “Não, vó”. “Ah, mas vamos cantar parabéns mesmo assim!” E, batendo palmas, criança curvada sobre seus anos e com sorrisos nos olhinhos azuis, começava: “Parabéns a você... Nesta data querida...”. Nós a acompanhávamos, procurando esconder a emoção.
Diagnosticada a doença, tornou-se necessário tomar algumas providências, o que causou grande polêmica na família. A filha com quem morava propôs-se a cuidar dela, desde que houvesse um revezamento entre filhas e noras - que eram numerosas, diga-se de passagem – mas a maioria optou por uma casa de repouso, cujo valor seria rateado por filhos e genros. Porém, assim que começaram a procurar o lugar adequado, Vó Nelinha surpreendeu de novo. De velhinha ativa, engraçada e espevitada, passou repentinamente a idosa cabisbaixa e alheia. Em poucas semanas largou Shang totalmente (que, igualmente idoso, não aceitava ser alimentado por ninguém, o que demonstrava com rosnados ameaçadores) e tinha grande dificuldade para caminhar. Mais algumas semanas e não mais andava, sorria ou sequer levantava a cabeça. Optaram por mantê-la em casa, cuidada pela filha carinhosa – e assim, fora do mundo, viveu por mais dez anos.
Em uma de minhas últimas visitas, fiquei sentada ao lado de Vó Nelinha cerca de um quarto de hora, observando-a. Notei que não piscava: de tempos em tempos, abria os olhos vagarosamente, mantendo-os assim por quase um minuto, para voltar a fechá-los igualmente devagar. Era como se fosse um piscar em câmera lenta, talvez um olhar periódico para a frente na tentativa de entender o que se passava em volta – e, ao perceber que nada fazia sentido, voltava ao seu mundo interno, ao seu silêncio. Para Vó Nelinha não havia mais passado, presente e muito menos futuro: seu cérebro todo tinha, enfim, dado um branco. Um imenso, total, infinito branco.
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Este texto faz parte do Exercício Criativo "Deu um branco"
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