A mulher

O choque violento das rodas do trem com os trilhos produzia aquele som característico, metálico e alto de sempre, fazendo tremer os robustos e rústicos dormentes que se deitavam preguiçosas. Dentro do trem a paisagem passava rápido: o sol já se preparava para tomar seu mergulho no horizonte, e as árvores, gramados e arbustos mais pareciam manchas verdes, marrons, douradas, alaranjadas, de diversas tonalidades, que se passavam aos olhos. Não havia conforto. Os vagões sem assentos ou janelas transportavam mercadoria. Mas mercadoria viva – um destacamento de soldados, prontos a serem mandados para o abate.

Não haveria muito o que falar dos tais vagões. Eram feitos de madeira meio envelhecida e clara, e tinham caixas também de madeira, e seu chão era revestido de palha. Havia também um ou dois lampiões pendurados ao teto, que chacoalhavam para lá e para cá com o compasso do trem. Volvamos nossa atenção para um vagão em particular. A porta corrediça estava parcialmente aberta, e de lá espiavam os olhos de um veterano, um senhor ruivo, bigodudo, de olhos claros e profundos. Mais no canto veríamos um grupo dos mais jovens que aproveitavam umas garrafas de cerveja que haviam surrupiado com sucesso e trazido em suas mochilas. Outros, aproveitando-se das caixas, jogavam baralho com cartas de mulheres… Bem… Digamos que faltava tecido para as roupas. Um outro havia trazido, inclusive, algum livro, e estava sendo atazanado pelos companheiros, que debochavam de sua intelectualidade, ainda mais em tal ambiente.

Mais próximo do homem ruivo havia um jovem, sentado no chão, observando um pequeno papel que havia em mãos. Ele poderia muito bem passar despercebido no meio de uma multidão, com seu jeito discreto, apesar de sua altura e cabelos louros que poderiam chamar a atenção. O veterano ajeitou o cinto e desviou seu olhar meditativo da floresta lá fora, e este foi cair justamente sobre o rapazola. Após uns segundos, como este não apresentasse sinal de vida fora a respiração lenta e constante, o senhor alaranjado lhe perguntou:

– Uma foto?

O rapaz assentiu, volvendo brevemente os olhos para o veterano.

– Deixe-me adivinhar… É a mulher que ama?

Novamente o rapaz assentiu, sem corar ou envergonhar-se nem um pouquinho.

De longe um dos camaradas que jogavam baralho ouvira as interpelações e interveio:

– Ei, loirinho! Mande-a pra cá, pra vermos se é bonita como as nossas!

Ao que todos os companheiros de jogo riram e fizeram barulho e estardalhaço. Os que bebiam cerveja observavam curiosos a cena, e até o intelectualzinho no canto ajeitou os óculos e tirou os olhos do livro, com receio de que ocorresse uma briga. Mas, afinal, o rapaz da foto mal parecia ter notado que algo lhe havia sido dito. Apenas o veterano pedia respeito aos jogadores, que continuaram, naturalmente, rindo e se divertindo.

– Deve ter saudade dela – continuou o ruivo, compadecido.

O jovem anuiu.

– Ela deve estar te esperando em casa. Acha que voltará logo para ela?

O senhor não estava acostumado com jovens tão tranquilos, numa viagem como aquela – a não ser, é claro, que estivessem se entregando aos prazeres, como os que bebiam cerveja e os que jogavam baralho com baralhos indecentes. E a não ser também que fossem levianos ou inexperientes, como outras caras por ali. Mas essencialmente via-se medo e apreensão nos restantes. E lá estava um jovenzinho sentado contra a parede, sem cerveja, sem baralho, sem leviandade (ao menos seu rosto expressava grande conhecimento e experiência), e se consolava com a foto de uma mulher amada. Cousa extraordinária, considerava o velho de guerra. Então veio a resposta à sua pergunta:

– Eu irei mais rápido para ela do que qualquer um desses voltará para suas amadas.

Algo nos olhos do rapaz e na austeridade de suas palavras fez o ruivo tremer. Mais um pouco e até os pelos de seu bigode estariam eriçados. Antes que pudesse responder começou uma arruaça entre os jogadores de baralho.

Mas o velho lembraria as palavras do jovem quando, dias depois, este caíra em batalha. Ao revirar o corpo ensanguentado do garoto para pegar suas plaquetas de identificação, com suas mãos sujas de terra, o senhor não pôde resistir à tentação e abriu o bolso da camisa do garoto para dar uma olhada na tal foto. Nela havia uma senhora com vestido longo e branco, com as mãos juntas e abertas uma contra a outra, da qual pendia algo que parecia um colar de pérolas. E sua cabeça estava envolta em luz. E no meio do zunir das balas e explosões o veterano, ajoelhado na lama e cercado de corpos e homens feridos, tirou seu capacete.

Luís Toniolo Serediuk
Enviado por Luís Toniolo Serediuk em 12/07/2015
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