A VIDA ENTORTA OS GALHOS DAS ÁRVORES
Na sala de estar de uma casa confortável, situada em um "bairro nobre da cidade", uma criança de mais ou menos dois anos brinca sobre o tapete todo cheio de abstratos arabescos tecidos em Esfahã. Está Gabriel, esse é o nome do garotinho, montando e destruindo castelos de legos multicoloridos. Os cabelos são pretos e cacheados, a pele clara contrasta com uma luz furtiva que penetra pela ampla janela de madeira. Veste uma jardineira azul estampada com os Flintstones sobre uma camisa da Disney. Com um tênis azul nos pés, brinca enquanto os pais se arrumam nesse domingo para ir à missa. A mãe o chama, ele com os brinquedos nas mãos, olha e sorri. O pai tira uma fotografia. Ficou ali Rafael todo sorridente mostrando as covinhas nas bochechas.
A uns cinquenta quilômetros dali, no final da tarde desse mesmo dia, existe outra família, composta pelo casal, duas filhas gêmeas mais velhas e uma criança de quase dois anos. As gêmeas estão mais enfeitadas que árvores de natal, sentadas no sofá, esperando a hora de ir para o jantar na casa dos avós maternos. Rafael é o nome do garotinho, que no banheiro toma seu banho. A casa é antiga, dessas que compõe conjuntos habitacionais de fábricas, construídas para os operários. A fábrica de linhas fechou, mas a casa continuou cheia de vida. Não há sinais de abastança, mas também não existem signos de pobreza. É o que o povo chama de família remediada. O garotinho, nesse final de tarde, banha-se numa banheira de plástico. Brinca com um patinho amarelo de bico vermelho e um livro de plástico do Pateta. A pele negra do garotinho reluz sob a luz vespertina que entra pela clarabóia do banheiro. Banheiro todo azulejado de branco. A mãe quase deitada no piso escorregadio abre uma toalha para pegá-lo. O garoto estira os braços roliços para a mãe deixando o patinho amarelo de bico vermelho e o livro de plástico boiando. O pai tira uma fato. Ficou ali registrado um menininho negro e gordinho com seus imensos olhos negros arregalados.
Hoje, vinte e três anos depois, olho essas fotos. Tingidas de sépia, desgastadas nas cores pelo tempo. No ano passado essas duas criancinhas se encontraram. Uma matou a outra. Não sei qual delas foi a vítima nem qual foi a assassina. Olhando essas fotografias não dá pra saber. Nelas não existe criança assassina. A mesma força que fez suas fotos descolorirem é a que fez uma delas matar a outra. São as tortuosidade dos tempos que seguem as trilhas de cada vida. Um passado que quanto mais remomorado mais adquire sentido e um futuro perigoso e desnorteado...