UMA JANELA PARA A ETERNIDADE - parte 1
Há uma estranha ironia no ar. Porque toda história que se pensa ser de ficção tem algo de real. E tão mais real ela é quanto mais fantasiosa se pensa ser. Enquanto histórias de não-ficção, como as que se contam nas escolas, tem muito de irreal e de fictício.
Esta história que se inicia, com exceção de uma ou outra liberalidade artística e para compor o enredo, é portadora de uma grande verdade, e baseada numa maravilhosa experiência, jamais esquecida. É sobre uma janela e sobre fragmentos de sonhos. Janelas e sonhos não representam fugas. Quando se abre uma janela, geralmente vislumbram-se novos horizontes. E os horizontes, nos sonhos, costumam ter uma cor especial. Se um dia estiver admirando um horizonte, e por acaso perceber nele algo de diferente, é hora de se perguntar, se por um acaso, não estais sonhando! Porque posso garantir, todos nós estamos apenas dormindo, e quando despertarmos de verdade, não haverá sonho que se possa comparar!
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Há muito tempo, quando eu era bem mais jovem do que sou hoje, meu irmão mais velho, Peter, presenteou-me com um livro. Na verdade, ele o havia ganho numa aposta, onde estavam em jogo um pião, algumas bolinhas de gude, e o livro em questão. Mas naquele dia ele o jogou por sobre a minha cabeça, numa daquelas tardes ociosa de terça-feira, quando não se tem nada melhor para fazer. Talvez por isso eu o tenha lido - eu devia ter uns onze anos naquela ocasião - e nunca havia realmente me empenhado numa leitura como naquela oportunidade, então, peguei-me surpreso ao perceber que eu gostara do que tinha encontrado dentro daquelas páginas. Decidi, que daquele momento em diante, amaria os livros, incondicionalmente.
Eu havia decidido, ainda cedo em minha vida, que seria como os personagens daquelas fabulosas estórias, que haviam sido apresentadas a mim, e tão por acaso, caído sobre a minha cabeça - literalmente - naquele dia. Muitas estórias e contos cativaram-me ao longo da minha existência, eu poderia citar muitos autores e muitos livros... Mas perder-me-ia em longos e prazerosos apontamentos que fugiriam ao propósito deste manuscrito. Mas posso mencionar, em especial, Júlio Verne. A sua notável imaginação trouxe ao mundo grandes romances de ficção científica, embora ele ainda continuasse amando o que tínhamos de mais humano, pois em meio a tanta ciência, o drama se desenrolava sempre sobre o espírito humano, as suas glórias e as suas fraquezas.
Talvez por isso, e já havia me pegado pensando assim por mais de uma vez, eu tenha decidido ainda jovem, tornar-me um cientista. Claro que, como é de praxe na nossa vida, quase nunca realizamos os nossos sonhos: nunca nos tornamos grandes atletas, ou artistas (entenda-se, famosos), pois artistas, todos somos, de alguma maneira, se me permitem a observação. A vida é um grande palco, e o nosso espetáculo pessoal é constantemente ensaiado sobre ele. Mas, enfim, os nossos mais caros sonhos se vão, juntamente com a nossa infância, breve e precocemente, diga-se de passagem. Então, comigo não fora diferente, tornei-me arquiteto, o que não era, em primeiro plano, o meu sonho de ser um cientista. Mas foi o melhor que eu consegui, mesmo que isso não me levasse até a lua, ou às profundezas do oceano, e ainda, às entranhas da Terra...
Formei-me com grande dificuldade em uma faculdade pública da minha cidade, que sempre insistia em cobrar certas taxas “corporativas”, que eu nunca tinha dinheiro para pagar, (embora eu nunca tivesse dinheiro para muita coisa mesmo). Mas o certo é que no verão de 1923 eu me formei, e apesar do meu esforço, teria comemorado a minha formatura sozinho, se aquela bela garota não estivesse na lanchonete, justamente naquele dia, e esbarrado em mim, derrubando-me café quente! O destino tem formas misteriosas de trabalhar... E ele trabalhou misteriosamente comigo, naquele dia – e só para constar... O café estava realmente muito quente!
- Oh! Me desculpe! – disse ela envergonhada, enquanto tentava me limpar azáfamamente (se é que essa palavra existe, mas me permita o leitor, usar aqui de palavras difíceis, e de alguma pequena pretensão em criar neologismos, mas é para tentar descrever o mais fielmente possível os meus sentimentos e impressões). Ainda lembro-me da sua face ruborizada, dos seus olhos assustados e brilhantes... Da minha pele assando e ardendo, e do lamentável cheiro de queimado que eu sentia...
- Tudo bem, não foi nada... – respondi mordendo os lábios, ainda sentia a queimadura me incomodado. Na verdade, eu me considerava um cara bastante sortudo por tudo aquilo, embora eu estivesse todo tostado em determinadas áreas que não vem ao caso mencionar agora, eu realmente adorei a situação! Foi a melhor coisa que me acontecera em muito tempo, talvez, em toda a minha vida até aquele dia! Afinal, foi a primeira vez que troquei palavras com Clara, a linda moça que passava pelo corredor da escola, deixando um rastro de perfume doce atrás de si, e que sabia balançar os cabelos como ninguém. Ela passava e eu a acompanhava com os olhos, e com o nariz, e também com o tempo, com o coração. Foi assim na escola básica, na média e na universidade – para azar de meu pobre e sofrido coração. Não que ela fosse esnobe ou me ignorasse, na verdade, ela era um doce de pessoa, diferente da maioria das mulheres que eu conhecia. Eu é que era muito tímido, e talvez, por amá-la em segredo, isso me afastava ainda mais. Para mal dos pecados, ela ainda me acompanhou na mesma faculdade, o que fez com que eu passasse o terceiro grau todo com a cabeça nas nuvens, e os pés na lama! Mas nesse dia conversamos, efetivamente, pela primeira vez, embora fosse preciso que se passassem dez anos!
- O que faz aqui? – riu sem graça - Não está na sua formatura?! Quero dizer... Você não está se formando hoje? – perguntou ela. Estava linda naquela roupa de garçonete... E, surpresa, ela sabia alguma coisa da minha vida! Afinal, eu não era um completo inútil para ela, como eu imaginava...
- É... Pois é... Você sabe... – disse eu, no alto da minha mais profunda e invejável retórica, cujo raro vocabulário era invejado pelo mais conceituado dos dicionários (ou dinossauros, como diria um velho amigo meu).
- Eu não tinha dinheiro pra bancar a festa, ai você sabe... Quer dizer, passei aqui pra fazer um lanche e ir pra casa. – continuei, agora com frases mais elaboradas – Mas... você também devia estar se formando, se não estou enganado?
- Não, não está não... – respondeu-me ela. –A minha situação não é muito diferente da sua. Sabe, o meu patrão não deixou que eu tirasse o dia de folga... E eu preciso trabalhar. Ele disse que pessoas se formam todos os dias, e que não há nada de especial nisso...
- Ele não deve se importar muito com essas coisas mesmo... – comentei. Lá estava ele, atrás do balcão, um velho gordo e sem muito charme social, palitando o dente com uma mão e coçando a barriga com a outra. Jogando blackjack enquanto degustava uma linguiça frita, depois de uma baforada do seu charuto fedorento. - É... eu não poderia me surpreender.
- Lamento – eu disse. - Mesmo assim, parabéns! – disse apertando a sua mãozinha delicada, na verdade, eu queria abraçá-la com força, de um jeito que ela nunca mais pudesse escapar, queria dizer que a amava, que a amava havia longos dez anos, desde que a vi pela primeira vez sentada na escada da escola. Mas é claro, eu não disse isso.
- Parabéns pra você também... – disse ela, ainda estava meio sem graça por ter me sapecado. Eu sorri meio encabulado.
- Olha... Por que você não me espera um pouco? Daqui a quarenta minutos eu saio. – disse ela olhando no relógio. – E, poderemos comemorar a nossa formatura juntos, o que acha?!
Eu quase caí para trás diante do convite. Ah... Se ela soubesse que mesmo que dissesse quarenta anos... ainda assim eu a esperaria...
A vida nos reserva muitas surpresas, agradáveis ou desagradáveis, depende da sorte de cada um. Até aquele dia eu não poderia contar qual era a minha sorte, pois que os meus dias eram sucedidos, quando não por momentos tediosos, por rotinas e acontecimentos que não favoreciam muito a minha fortuna. Mas as coisas estavam começando a mudar.
Esperei por cinquenta e oito minutos e quarenta e sete segundos, o mais feliz chá de cadeira de toda a minha vida! Assim, ficamos ali mesmo, numa mesinha no canto. Tomamos chocolate quente e comemos alguma coisa que não me lembro bem o que era. Chovia muito lá fora, e enquanto a janela se cobria com um manto cinzento feito névoa, e os pingos gotejavam em surdos batuques no vidro, compartilhei com ela a melhor formatura que alguém poderia querer. Eu não poderia ter sonhado coisa melhor.
Claro que começamos a namorar, e depois daquele dia, saímos muitas vezes mais. Os jardins da cidade enjoaram-se da nossa cara. As pracinhas, os parques, estávamos em todos! Éramos a alegria dos vendedores de algodão-doce, sorveteiros, pipoqueiros, pombos, moleques travessos, vendedores de flores, mendigos, enfim... Todos aqueles que de alguma forma angariariam algo com o nosso amor. Com o tempo arrumei um bom emprego, paramos de frequentar aquela lanchonete de esquina, levei-a em lugares melhores. Mas vez ou outra, voltávamos ao nosso velho cantinho, a pedido dela é claro, para recordar o nosso primeiro encontro, e ainda que lá fosse uma espelunca, e o velho gordo e o seu charuto fedorento continuavam a dar o ar de suas graças, eu até gostava, aquela era a “nossa” espelunca. Não podia ser diferente, foi onde a conheci de verdade, onde tudo começou. E como já devem estar imaginando, foi também onde a pedi em casamento. Demorou um pouco, mas não que eu não a amasse, só queria esperar para ter as condições de dar a ela uma vida melhor do que a que eu andava levando, uma em que ela não precisasse colar o umbigo naquela chapa de hambúrguer de domingo a domingo, e naquela altura do campeonato, eu já podia.
Casamos na melhor igreja da cidade, com a mais bela festa de que tiveram noticia os fofoqueiros de plantão. Para levá-la até a porta da igreja, contratei a melhor carruagem e o melhor cavaleiro de que já ouviram falar, infelizmente, não o melhor cavalo, que resolveu empacar cavalarmente na sua decisão cavalar de não mover uma só pata do lugar! O que fez o meu amor, e a mais bela noiva da cidade, vir a pé mesmo, por três quadras até a porta da igreja. Foi um momento memorável! Mas nem tudo é perfeito... Depois, tiramos uma foto com o cavalo...