Ver e não ver *
“Minha querida Amy,
Ainda não sei até aonde vou chegar com esta gravação. Mas precisava que você soubesse, o quanto antes, dos desdobramentos que esta operação em meus olhos causou. Tenho vergonha de lhe falar pessoalmente, afinal sei com quanto afinco e cuidado – e com quanta, quanta esperança! – você tratou de tudo, tomou as rédeas de minha sorte e conseguiu os melhores especialistas para que as cataratas, que desde os seis anos de idade me cegavam, fossem removidas e eu pudesse enxergar de novo. Depois de mais de quarenta anos, voltar a ver parecia a todos uma grande bênção! Mas, meu amor, faltou perguntarem minha opinião...
Ser cego praticamente desde o nascimento, já que me faltava a lembrança da primeira infância, não é de todo ruim. Você se acostuma, seus sentidos se apuram e a bengala é como se fosse um radar. Sempre fui autônomo, entrava e saía de ônibus, trem, metrô, era um massagista respeitado, meus dedos deslizavam com sapiência pelos corpos de meus clientes, conhecia todos os cheiros, os sons, as vibrações de nossa casa e das pessoas que amava. Após a cirurgia, que seria libertadora, passei a enxergar apenas luzes, vultos, movimentos com cores e sem forma, borrões embaçados e sem rosto. Isto é ver? E todos tão felizes por mim... Você mesma, minha querida, guardou a bengala dizendo que agora não precisaria mais dela. Mas como poderia saber, se não estava por trás de meus olhos?
Amy, agora não sei mais quem sou. Quando era cego, via. Agora, que vejo, tornei-me um cego, na pior condição que a cegueira possa ter. As luzes se acenderam e não enxergo nada, não reconheço as coisas que reconhecia pela aura, pelos contornos. Você me obriga a ver mas eu não vejo: ainda preciso apalpar, tocar, sentir. O mundo dos videntes é feito de imagens e luzes, porém o mundo da escuridão é mais sutil que isso. Nosso universo é feito de temperaturas e contornos, sons e perfumes... e nem por isso deixamos de ver.
Você, com amor, preparou-me de forma extremamente cuidadosa para a cirurgia. Fisicamente. Mas ninguém se lembrou de me preparar psicologicamente para sair da delicadeza das sombras e entrar aqui, onde luzes e cores gritam, confundem-se e se mesclam. São borrões o que agora vejo - e o que capto é muito menos que antes.
Creio que decepcionei a todos por não conseguir coordenar olhos e movimentos. Desculpe-me por esta depressão que me atinge. Espero que isso passe logo, pois a vontade que tenho é de morrer. Ao menos, estaria já acostumado com o breu eterno: lá, me sentiria mais à vontade do que nesta casa que agora, banhada em luz, não reconheço mais.
Com amor, Virgil.”
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* Texto baseado numa história real, relatada pelo neurocientista britânico Oliver Sacks em seu livro "Um antropólogo em Marte", no qual descreve "sete histórias paradoxais", surpreendentes, de pessoas com deficiências, distúrbios ou doenças neurológicas. O título deste conto, uma carta gravada imaginária, é o mesmo da história do americano Virgil, relatada por Sacks. Recomendo a leitura deste livro, da Companhia de Bolso (Cia. das Letras). A minha edição é a 4ª reimpressão, 2013.
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Este texto faz parte do Exercício Criativo "O dia em que fiquei cego"
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