A mandinga
J. Raposo era o tipo do sujeito impressionável. Pequenas coisas o aturdiam por muito e muito tempo. Nessas ocasiões, ouvia os amigos que lhe traziam opiniões nos conflitos. Ouvia um, ouvia dois, ouvia quantos se dispusessem a opinar. Depois tomava uma decisão... Mesmo assim passava dias a ruminar se aquele fora o caminho certo. J. Raposo estudara ciências biológicas e teologia, mas exercia funções burocráticas no serviço público. Um dia, J. Raposo se apaixonou por Amelinha. Durante meses dividiram a cama. Reinou a felicidade até que Raposo prevaricou. Um deslize. Deslize de homem, disse ele. Amelinha, já sem a chama amorosa dos primeiros tempos, viu na falcatrua a oportunidade para safar-se daquele homem medroso. Foi-se embora, xingando e prometendo nunca mais voltar.Dia seguinte, na estante da sala, J. Raposo encontrou uma lembrancinha. Era um bonequinho com uma agulha cravada no peito. Uma mandinga, das mais terríveis, avaliou ele. Não teve mais sossego. Só pensava na vingança de Amelinha. Como defender-se? Perdera a segurança e passou a viver sobressaltado. Achou melhor não confidenciar aos amigos, que poderiam achar tudo aquilo ridículo. O fato é que em casa, no trabalho, na rua, Raposo não tinha mais sossego. A agulha vivia a espetar-lhe o peito. Procurou o padre. O reverendo ouviu a história, admirou-se de que aquele homem tão bem formado se preocupasse com feitiços. Raposo, que até então não tocara no boneco, encorajou-se, pegou da mandinga e levou-a para o vigário, que pisoteou o boneco com a agulha e jogou na lixeira da sacristia. Alívio... A vida seguia. O padre o salvara, avaliou. Mas quando se lembrava de Amelinha – e a mulher voltava-lhe com frequência à memória –, o bonequinho e a agulha vinham perturbá-lo de novo. Passaram-se dias, passaram-se meses, passaram-se anos. Uma tarde, J. Raposo voltava de ônibus para casa. De repente, uma bala, uma bala perdida atinge-lhe em cheio o peito. Por seu pensamento, só houve tempo de passar uma mulher, um boneco e uma agulha...