MISERE

 
 
Na república de estudantes interioranos os estômagos começavam a reclamar depois de três dias sem comer. Ninguém ali era anacoreta chegado à ascese ou tinha vocação para São Jerônimo.
_ Vai lá na geladeira e olhe o que a gente tem para comer? Vou cozinhar.
Todos já sabiam da situação alimentícia da casa. Mas havia aquela esperança de um milagre ou de algum engano dos sentidos. O amigo estava numa fase meio cartesiana, crendo que algum demônio habitava os sentidos. Ele foi e olhou. Voltou e falou com explícito desalento:
_ Tá vazio! Não tem nada. Só uma forminha com gelo.
Então o suposto cozinheiro foi olhar com seus próprios olhos, só pra conferir ao estilo São Tomé. Como se o outro além de miserável fosse um invetarado mentiroso.
_ É mesmo. A geladeira está cheia de vazio. Só a forminha de gelo e minha bombinha para asma. Só gelo! Precisamos de dinheiro pra comprar uma frost-free!
_ !!!???
O outro não entendeu. Tentava compreender aquela estranha lógica. Mas entendeu mais ou menos; a buscava de um nada perfeito. Para ele contudo, era melhor dinheiro pra comprar comida. Então disse:
_ E aí?
_ Aí o que?
_ Não é melhor dinheiro para comprar comida do que ter um vazio inteiro e absoluto?
_ Tem problema não!
Então ele foi até o quarto e vestiu uma jaqueta cheia de espuma  e saiu sob um sol de 40º para o supermercado fazer "compras".
_ Eu vou "comprar" comida, mas é você quem vai cozinhar.
_ Ok! Se for "comprar" linguiça compre das mais caras. Pois se for preso, terá um mínimo de dignidade.
Ele saiu todo empacotado em direção ao supermercado. Ele era um artísta nessa coisa de "comprar" comida sem dinheiro. Mas se o pai dele soubesse disso, o colocaria num seminário religioso.