Fraude VIP

1

Mas vejam só todos estes olhos! Os verdes que parecem bolinha de gude, os azuis envolventes, castanhos bastante curiosos, aqueles do tipo puxados... outros tantos tão abertos, mas nem assim conseguindo se livrar das notáveis rugas. Há também alguns já bem vermelhos, uns vários míopes auxiliados por lentes que de quase coladas às íris estão a latejar de emoção, aposto. Puramente crianças do lado de fora da padaria a olhar os doces da vitrine, estes doces aqui, redondinhos, torneados, suculentos, adocicados. Balançam as notas, ou contam-nas ainda enfiadas no bolso da camisa, estas crianças abobadas, querendo chegar perto e abocanhar as gostosuras, mas com o medo que se deve dos brutamontes do estabelecimento.

Eis que um dos espectadores, destemido, ou sob efeito de alguma droga baixa as calças extremamente excitado, com a cueca quase a rasgar, e chega o Dionísio, negro, alto, forte, mal-humorado, de terno e gravata, para levar o ousado para fora do recinto. Tenho pena é das meninas que vão atender estes esfomeados mais tarde. E comemoro por aqueles que não tem dinheiro suficiente para um programinha e vão embora matar a vontade com as esposas mesmo. Vai ser um pega daqueles, quente igual os das noites da lua de mel. Vão sacudir a estrutura da cama e talvez até do assoalho, movendo-se como leões a brigar, trepando com vontade e pensando em mim. Sejam felizes, meninos.

Do último deslize de minha mão no cano suspenso, passo à coxa e a dirijo ao laço na lateral da calcinha. Os aplausos surgem antes, durante e depois da remoção do último empecilho. Eu até canto nos momentos finais. Canto mesmo. Minha função é dançar e me despir, mas como sei a letra da música da Cindy Lauper que está a tocar, canto sim, embora ninguém possa me escutar. Um momento para o prazer só meu. Enquanto não consigo ainda cantar ao vivo, com uma banda de verdade, nua agora, canto para mim. Todos os olhos estão surdos neste momento, olhando não para minha boca que canta, mas para outras partes do meu corpo.

Erro a letra. Algo que acontece somente quando estou nervosa. E é como me sinto agora ao reconhecer um cliente. Não que eu não conheça quase todos os outros, assíduos do clube, mas é a primeira vez que noto a presença do Sérgio e não gostei nada. Ele me olha, boquiaberto também, aplaudindo também, e não sei se aplaude o show de uma stripper ou se ovaciona em seu modo particular minha façanha de ter enganado não apenas ele, mas também os demais funcionários de onde trabalha. "O que aconteceu, Nadia?", pergunta Matilda logo no fim da performance. A colega assistia à minha apresentação. Ela é também minha amiga. Surpresa, quero saber o motivo daquela pergunta. "Ora, ficou nua e mudou completamente no palco! Você não dançou bem depois disso. E tava com cara séria, jeito de quem tá preocupada. Aconteceu alguma coisa?". Respondi a ela que sim, havia acontecido algo, mas que iria explicar depois. "Você pode me fazer um favor?", pedi. Ela consentiu. "Tá vendo aquele cara de paletó cáqui? Sim, o de bigode. Pega teu celular, chega mais perto discretamente e tira umas fotos dele. Obrigada". Me apressei para conseguir falar com o Sérgio antes que fosse embora. Última vez que o vi, estava no bar, mas agora dirige-se à saída. Alcancei-o a tempo.

- Olá... - exclamei, com um último fio de esperança para que ele não lembrasse de mim e não tomasse qualquer providência. Que estivesse eu equivocada a respeito de seu gesto!

- Quanto tempo, Neide... - puxei-o pelo braço e falei ao ouvido em voz baixa.

- Não diga o meu nome. Aqui me conhecem por Nádia, entendeu?

- Hmmmm... bem melhor que seu nome real. Melhorou das costas? - não era preocupação. Ele estava sendo irônico. Tenho que admitir: estou perdida. Ele vai espalhar a notícia no INSS e eu vou perder meu benefício.

- Ainda dói muito. Está difícil sobreviver, se não fosse este trabalho eu não sei o que seria de mim.

- O valor daquele seu afastamento é quase o mesmo que eu ganho de salário. Pensei que você dançasse por hobby!

- Não é fácil quando se tem dois filhos e aluguel para pagar.

- É mesmo? - respondi com outra pergunta.

- E a Márcia, como está? - este é o nome da esposa dele.

- Agora está bem. Teve pneumonia há pouco tempo, mas já melhorou. Tenho que ir agora.

- Espera, vamos conversar mais! - pedi com a voz mais tristonha de que fui capaz.

- Tô com pressa. Mas fique com meu cartão. Nele tem o telefone de linha e meu celular. Me liga amanhã e a gente conversa. Eu tenho mesmo que ir. Até logo, Neide. Nádia!

2

- Pronto.

- Sérgio? É Neide. Você pode falar agora?

- Claro, querida. Que surpresa boa! Como vai?

- Ai, não me chama de querida, não gosto.

- Não gosta? Por quê? (sei que não gosta, minha filha. Por isso te chamei assim).

- Porque é assim que eu chamo as pessoas que eu odeio.

- Meu Deus! Tá brincando?

- Tô falando sério.

- Desculpe. Como quer que eu te chame?

- Neide mesmo.

- Como está sua tarde, Neide? Dormiu bem? (ele é mesmo um filho da puta).

- Liguei para te pedir uma coisa.

- Peça, então.

- Não me denuncia...

- Neide, uma das minhas obrigações é zelar pelo bom nome da instituição em que trabalho...

- Por favor! Eu vou ser processada! Vou perder o benefício!

- Você devia ter pensado nisso antes. O fato de você trabalhar em outra cidade não diminui o risco de ser reconhecida.

- Você também foi reconhecido.

- Como assim?

- Ora, eu te conheço.

- E daí?

- Vou contar pra Márcia. (puta que pariu! Ela vai contar pra Márcia!)

- Olha, independente de qual seja sua reação, eu não vou deixar de relatar o que presenciei. Me desculpe.

- Você entendeu o que eu disse, Sérgio? Vou contar pra Márcia que você esteve no clube.

- Sim, entendi.

- Eu tenho o celular dela.

- Ah, tem?

- Tenho. Anotei do site.

- A página dela? (Márcia é professora de dança).

- Sim. Está na minha agenda. Então pense bem no que você vai fazer.

- Já está decidido. Antes de ligar para a Márcia, ou mesmo depois, fale também com seu advogado. E se tiver novidades, me liga de novo, querida. Um prazer falar contigo. Beijo.

3

- Pet Shop Au Au, boa tarde.

- Boa tarde, eu gostaria de falar com a Márcia.

- Um minuto, vou chamar (coragem, Neide. Coragem. Respira. O gravador tá rodando e vai ficar tudo registrado, desde o nome ridículo da loja. Ele vai foder com a sua vida. É uma certeza. Vou apenas mencionar o nome do safado e quando ela quiser saber o que tenho para contar, desligo. Mostro a gravação para ele. Essa é a última chance!).

- Alô.

- Márcia?

- Isso. Quem fala?

- Márcia, preciso te contar uma coisa. É sobre o Sérgio.

- Querida, nada que diz respeito ao meu ex-marido me interessa.

- EX-MARIDO?

- Sim. Ex-marido há cinco meses. Quer cuidar da vida dele, fique à vontade. Quer entrar na vida dele, boa sorte. Boa tarde pra você. (desligou antes que eu pudesse lembrar de pedir para que não me chamasse de querida).

4

(Aparece a palavra "querida" na tela do celular).

- Neide, boa noite. Quanto tempo!

- O que você quer?

- E a Márcia, está bem?

- O que você quer, Sérgio? Vamos negociar. O que você quer?

- Tô acabando uma pizza de muçarela. Quero uma cerveja.

- Sérgio, eu tô falando sério. Pelo amor de Deus, pede! O que você quer? (Ela está chorando).

5

A Márcia não ligou. Ou a Nádia não ligou para ela, ou não deu tempo dela contar durante o telefonema, ou contou e ela não se importou com a história. Apaga a terceira hipótese. Quer seja por algum resquício ainda de sentimento ou então por inveja, ela não deixaria de se importar com a história. Mesmo sendo o caso dela se ver sem saída e ter que fazer o que vai fazer por obrigação, não deixo de usar meu melhor perfume para receber a Nádia aqui em casa. Aquele corpo dançante do palco, o corpo da estelionatária talentosa bem aqui, dançando e cantando a música da Cindy Lauper na minha sala dentro de alguns minutos. Atendimento VIP gratuito e de qualidade. Inevitável: o estômago aperta de ansiedade e tento amenizar bebendo mais um pouco da garrafa do Martini. A campainha toca. Abro a porta, ela séria, eu sorrindo com satisfação. "Boa noite, Nádia. Pode entrar". Prometi que não ia mais chamá-la de querida.