830-O LIXO E O LUXO - De notícias de Jornal
O LIXO É UM LUXO
A história é real e as notícias foram insistentes nos jornais de Belo Horizonte no início de janeiro de 2003. Tentarei aqui dar apenas uma versão própria para ser lida sem provocar nojo ou repugnância nos leitores, pois o assunto é, no mínimo,... fedorento! Os nomes dos intervenientes foram alterados, mas conservei os dos locais onde ocorreu o incidente.
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— Pare! Pare!
A ordem, dada aos gritos, partia de um homem empunhando um revólver e dirigia-se aos dois ocupantes da cabine do caminhão de lixo, prestes a abrir a comporta traseira e deixar o lixo coletado na cidade de Caeté.
Estavam no lixão, local onde diariamente 25 toneladas de lixo coletado eram depositadas a céu aberto.
— Chega prá lá! — Abrindo a porta do caminhão do lado direito, ordenou, agitando de modo ameaçador, ao mesmo tempo em que se sentava no banco. Os trabalhadores tremiam de medo e não puderam esboçar nenhuma reação.
— Toca prá prefeitura!
— Hein?
— É, toca prá frente da prefeitura e não erre o caminho, que conheço bem.
Sem mais palavras, o motorista dirigiu o caminhão, percorrendo as mesmas ruas pelas quais havia, há pouco, passado coletando o lixo.
— Para bem em frente do prédio.
O motorista encostou o caminho no meio fio.
— Agora pode descarregar o lixo.
— Aqui?
— É, aqui mesmo, bem na porta do edifício.
Com o revolver ameaçador na frente de sua cara, o motorista não teve alternativa. Apertou os botões, puxou uma alavanca, e a caçamba do caminhão foi se inclinando. A tampa traseira abriu e o conteúdo nauseabundo escorregou sobre a calçada e esparramando-se pela rua.
Os funcionários da prefeitura assomaram às janelas do edifício. O prefeito apareceu numa sacada e gritou, indignado e autoritário:
— Mas o que é que isso?
Pela janela da cabine, o homem armado gritou:
— Tou devolvendo o lixo! Na porta do meu restaurante não cabe mais. Fique com ele.
E dirigindo-se ao motorista:
— Toca! Volta pró lixão.
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Bem próximo do lixão, o homem armado ordenou:
— Me deixa aqui.
O motorista parou o caminhão defronte a uma placa que anunciava: “RESTAURANTE E PESQUEIRO PEIXE FACIL”.
— Dá um recado pro seu patrão. De hoje em diante, caminhão não despeja mais lixo aqui. Sou dono deste restaurante aqui, olha, e caminhão de lixo aqui vai ser recebido à bala.
Antes que chegasse à porteira que abria para o restaurante e pesqueiro, Sinval Silveira foi abordado por dois policiais, que saltaram da única viatura de segurança da cidade. Apontado uma arma, um policial ordenou:
— Parado aí! Largue a arma! Teje preso!
Sinval não opôs nenhuma resistência. Contava com isto. Jogou arma aos pés do policial e levantou as mãos, em sinal de rendição.Algemado, foi metido dentro do carro sem mais palavras, e conduzido à delegacia de polícia.
A delegada já o esperava, sentada, fumando tranquilamente, soltando baforadas para o teto.
— Escrivão, vai tomando nota.
E dirigindo-se ao preso:
— Vai se explicando. E fale direito, que não tenho paciência com marginal.
Sinval, algemado e de pé, começou dizendo em voz baixa:
— Sou dono do pesqueiro ao lado do lixão. Já num aguento mais tanto mosquito e a catinga do lixão. Tou perdendo freguesia, tou quase fechando o restaurante.
— Mas o que o senhor fez é crime. Sequestro, posse de bem alheio, e uso indevido da via pública para despejar o lixo.
— Sei disso, mas perdi a cabeça.
— E essa arma? Que é isso? Onde é que o senhor arrumou isto?
— A senhora tá vendo, não é arma de verdade, é de brinquedo. Pertencia ao meu filho quando era criança.
— O senhor se sente incomodado, porque não se muda de lá? — A pergunta, completamente imprópria se feita por uma pessoa comum, soou um disparate na boca de uma delegada de polícia. O comerciante retrucou à altura:
— A doutora delegada sabe que não é bem assim. Eu já estava estabelecido com o pesqueiro, há mais de treze anos, quando a prefeitura começou a despejar lixo numa voçoroca, ao lado do pesqueiro. Reclamei desde o começo. Já tenho até uma ação contra prefeitura, por causa do prejuízo que estou tendo... Mas a justiça aqui só funciona contra a gente que trabalha honestamente...
— O senhor se cale ou mando prender por desrespeito à autoridade.
— Tá bem, retiro o que disse. Mas a causa tá lá no fórum, não anda... Também já tinha tentado resolver com a prefeitura, é tanto mosquito e tanto fedor que até os outros vizinhos tão incomodados. Tudo sem resposta, é uma burocracia sem fim. E tem que pagar pra todo mundo...
— Olha o respeito!
— É verdade! Num tou mentindo não, senhora delegada;
— Não fale o que não pode provar! O senhor assine as declarações e aguarde na sua residência, vai ser convocado para novas declarações a qualquer hora.
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A prefeitura de Caeté, antes de tomar qualquer medida a fim de resolver o problema de lixo da cidade, determinou um exame na situação do Restaurante e Pesqueiro Peixe Fácil. Verificou-se que o pesqueiro já existe há treze anos, instalado bem antes de começar o depósito de lixo, e que até 2005 a situação era legal. Desde então, venceu-se a autorização para funcionar, e a renovação da tal autorização não foi mais emitida para Sinval devido à ação que o mesmo estava movendo contra a prefeitura. Os vereadores foram acionados para examinar qual a melhor punição para o dono do pesqueiro.
Coisas do Brasil, que mais parece uma criação de Kafka.
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Apesar de tudo, foi uma atitude extrema e bizarra que resultou em resultados práticos. A prefeitura de Caeté já tinha sido notificada, em 2005, por órgão estadual de defesa do meio ambiente sobre a irregularidade do lixão. O prefeito defendeu-se dizendo que “herdara” o lixão da administração anterior (escusa idiota muito usada por administradores nacionais) e que no município de Caeté não teria lugar apropriado para fazer um lixão. Como medida de emergência, o lixo da cidade será depositado, mediante convênio feito às pressas entre as prefeituras, no aterro sanitário da vizinha cidade de Sabará.
Sinval vendeu o pesqueiro e se mudou para Belo Horizonte. Ao deixar a cidade, exclamou para quem quisesse ouvir:
— Caeté e pesqueiro, nunca mais!
ANTONIOROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 6 de março de 2014.
Conto 830 da Série 1.OOO HISTÓRIAS