829-PÁSSAROS E PAPOULAS - Memórias da meninice

— Tonico, não entra no arrozal! Não é preciso! Vamos armar as arapucas, lá perto do moinho.

Parei, olhando para trás. Havia caminhado uns dez metros, e deixado uma trilha no campo de terra macia onde o arroz crescia viçoso, num verde esmeralda, os pés na altura de meus joelhos. Moitas de tulipas, que cresciam com mais rapidez do que o arroz apareciam aqui e ali, verdadeiras manchas de sangue de suas flores vermelhas entre o verde esmeraldino.

—Vou pegar umas papoulas, expliquei ao meu primo Natal, que segurava as duas arapucas.

—Ocê ta estragando a plantação.

Voltei, marcando ainda mais minha passagem desastrosa pelo arrozal.

Acompanhei Natal sem colher as papoulas.

—Porque nascem papoulas no meio do arrozal? — perguntei.

—No meio da semente de arroz tem essa praga, ele respondeu.

Ajudei Natal a carregar uma arapuca e fomos para a beira do moinho de fubá, que ficava ao lado do córrego. Alem das arapucas, a gente levava um alçapão, para colocar os pássaros que caísse na arapuca.

As arapucas eram novas, feitas pelo Zé Pina, nosso primo “torto”, habilidoso em trabalhar com a taquara e fazer gaiolas, arapucas, e até cestas para carregar coisas. Ele tinha feito aquelas duas no dia anterior e nos avisou:

—Ceis toma cuidado com as farpas de bambu, prá não cortar as mãos nem enfiar nos dedos.

O alçapão, pequena gaiola de quadrada de uns vinte centímetros de lado e com a portinha no lado superior, já era mais antigo, as taquaras já estavam pretas e as farpas já tinha desaparecido.

Comecei a Assobiar.

—Para se fazer barulho, ce vai espantar os passarinhos.

—Uai, eles vão voar de qualquer jeito, quando a gente for armar as arapucas.

Mesmo tendo razão, parei com o assobio. Descemos o barranco pelo estreito caminho íngreme, que tinha até alguns degraus cavados na terra firme. Antes mesmo de chegar à pequena área plana e limpa defronte ao moinho, um bando de passarinhos levantou, numa revoada organizada. Rolinha para um lado, tizius e canarinhos, mais rápidos, em outra direção, sabiás levantando-se quase verticalmente.

—Num falei? Elas voam com qualquer barulho.

As arapucas eram grandes, para os padrões da época. Pirâmides de taquara fina, talvez uns trinta centímetros de lado, podiam apanhar até uns cinco pássaros, quando bem armadas. Mas dava trabalho para armar, usando um pedaço fino, um palito de bambu de uns dez centímetros, sobre o qual apoiava a arapuca por um lado. Encostado nesse palito, o suporte vertical, outro pedaço de bambu, mais comprido, era encostado no palito vertical, de tal forma que qualquer esbarro, por mais leve que fosse, desarmaria a rmadilha, fazendo a arapuca cair sobre os passarinhos que estivessem comendo ou ciscando sob a arapuca.

Começamos espalhando quirera nos dois locais sobre os quais armamos as arapucas.

— Cuidado! Os pauzinhos de baixo têm de ficar bem encostados, mas não podem se agarrar. Vamos ver se pegamos algum canarinho. — Disse Natal, que tinha prática, pois morava no sítio e vivia atrás de passarinhos.

Armamos, e afastamos do local. Subimos o barranco e ficamos escondidos atrás das moitas de capim. Natal colocou o alçapão entre nós dois.

Aos poucos, os passarinhos foram chegando. O local era muito freqüentado porque ali eram jogados os restos de fubá e quirera quando as caixas e os utensílios usados no moinho eram limpos.

As rolinhas chegavam primeiro, eram mais afoitas, depois vinham os sabiás, por fim os tico-ticos, os tizius e o mais ariscos, os canarinhos vinham por último. Eram esses que mais queríamos que caíssem nas arapucas, pois podiam ser vendidos. Os outros não valiam nada, se bem que as rolinhas, limpas, podiam ser fritas e comidas.

Não demorou muito mais de vinte aves estavam de volta. Não estranhavam as arapucas armadas distantes uns dois metros uma da outra. Recomeçaram ciscar o terreno e ao verem a quirera debaixo das arapucas, lá foram, passinhos miúdos (as rolinhas) ou saltitantes (sábias e canarinhos), ávidos pela comida.

De repente, uma das aves esbarrou nos palitos, desarmando a arapuca. O barulho, por mínimo que fosse, assustou as aves que estavam debaixo da outra arapuca. Na tentativa de fugirem também desarmaram a segunda arapuca.

— Opa! Pegamos um monte! — falou Natal, em voz baixa, desnecessária, pois o bando já havia sumido de nossas vistas.

Corremos para as arapucas. Eu levava o alçapão.

— Cuidado! Não deixa escapar nenhuma!

Cada qual foi para uma arapuca. Levantando bem devagarzinho uma ponta do alçapão, enfiei com cuidado a mão por baixo e peguei uma rolinha. Segurei-a com firmeza, fechando os dedos de forma a prender as asas junto ao corpo, e retirei a mão do alçapão, não dando chance às outras aves (tinha mais três) de fugirem.

Levei-a para o alçapão, onde Natal já colocara um sabiá-laranjeira.

—Tem mais três na minha arapuca, eu disse.

—No meu acho que tem mais. Vamos pegar todas, respondeu Natal.

Com cuidado, fomos repetindo a ação. Consegui pegar um tiziu e um sabiá.

— O canarinho fugiu! Gritei quando num rápido movimento, o passarinho amarelo (só vi um risco amarelo passando rente ao meu nariz) escapou.

Natal, mais habilidoso, conseguiu por no alçapão todos os quatro pássaros. No final, havíamos aprisionado sete aves: um canarinho, um tiziu, quatro rolinhas e um sabiá-laranjeira.

— Vamo imbora.

Subimos o barranco e pegamos o trilho. Eu levava as duas arapucas e o Natal, o alçapão, com cuidado para evitar que os pássaros fugissem.

Não resisti à beleza das papoulas e fui pegar três de um pé que estava mais à beira do arrozal.

— Cê é bobo mesmo! — falou Natal.

Chegamos à casa do sítio e mostramos o produto da nossa proeza ao Zé Pina, que já tinha as gaiolas prontas, dependuradas numa viga do curral. . Colocamos as assustadas aves nas gaiolas, menos as rolinhas, que levamos, com os pés amarrados, prá cozinha.

Ali mesmo, na cozinha, peguei uma caneca, coloquei água pela metade, arrumei as papoulas e levei para sala de visitas sobre cuja mesa descansei o arranjo das flores.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 5 de março de 2014.

Conto # 829 da Série 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 19/06/2015
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