SOB O SOM DO ÚLTIMO DORMENTE

Em homenagem à vida e à pós vida:

Por muito tempo elas passaram a ser duas, e como todos nós, elas de nada sabiam.

Aliás, ninguém nunca sabe de nada com exatidão, e ali, apenas a vida guardava consigo os segredos que nunca nos revela a tempo de nos prepararmos para o curso das novas rotas.

Viviam ali por tantos anos, duas irmãs solteiras, tantos anos a fio, que sequer perceberam que quando o tempo "finge ficar muito tempo parado" é só um truque de mágica para que nunca percebamos que voamos pela vida à velocidade da luz.

Passar pelo tempo é como viajar de avião: chegamos ao destino sem grandes movimentos, a despeito das turbulências dos caminhos e dos vácuos que nos assustam.

Todavia, ali, mais uma turbulência chegaria sem nos avisar, sem um comandante experiente que nos alertasse das inexoráveis mudanças de rota que dali se aproximavam.

Observando os movimentos tênues do tempo, aprendi com elas, minhas queridas "tias-mães", que a vida mecaniza alguns destinos com uma infindável carga de energia sobrevivente e misteriosa que nos movimenta até o último minuto.

Aprendi também que desconhecer é o maior segredo de concretização duma felicidade desavisada.

Já, saber, é puro castigo.

A mais nova delas, professora, desde muIto cedo trabalhara como arrimo de família de imigrantes italianos, família de gente vindoura disposta a trabalhar e crescer, uma família simples pequena e calorosa e que cujos componentes, aos poucos, o tempo se incumbiu de colocá-los no seu devido lugar.

Há pouco tempo ainda eram duas, mas não seriam por muito tempo.

Restará-lhe à professora apenas a irmã doze anos mais velha, a quem ela nutria um apreço de filha, numa história de vida simbiótica.

Era ela, a "irmã-mãe" carinhosamente chamada de " a nossa Bá", florista das flores mais belas deste mundo, quem cuidava de toda a logistica do lar para que a professora durante um tempo incontável de anos, por período integral de trabalho, pudesse se dirigir à zona rural, de charrete, toda paramentada contra um sol que come as peles, para alfabetizar crianças e adultos e servir a merenda feita pela Bá, ofício antes desempenhado pela minha avó.

Era ela um desses profissionais anônimos que constrói edificações pessoais e sociais sólidas, de amor incondicional à arte de ensinar, tinha paixão pelo que fazia; e na cidadezinha provinciana de aproximdamente oito mil habitantes, posso assegurar que quase metade dela passou em algum momento familiar pela mão daquela professora tão querida e dedicada, já com setenta e nove anos.

Eu sempre lhe dizia, com profunda admiração, que nela enxergava uma guerreira da vida.

Certo dia, em meio a uma festa na qual dançou freneticamente a noite inteira, olhou no espelho e se percebeu amarela.

Prontamente me comunicou e eu gelei com a narrativa.

Decerto não era cor de amarelo luminosidade de tempo de vida e daquele dia em diante enfrentou a grave doença que lhe tiraria rapidamente daqui.

O interstício sofrido entre adoecer e partir foi um período de grande aprendizado para todos que estavam à sua volta.

A mim também foi imensa dor silenciosa.

Percebia-se que ambas irmãs, já fragilizadas pelo tempo que a ninguém poupa, tinham apenas forças e recursos emocionais para viver; a morte, decerto, ali nunca fez parte das suas vidas tampouco dos seus projetos e destinos, e assim, num consenso familiar, decidimos que nenhuma das duas saberia das mudanças das rotas já previsíveis.

A Bá, para quem todo dia era dia de flor, com a morte da irmã sua mantenedora, teria que mudar de jardim.

O seu jardim era sua única noção de mundo.

Em pouco tempo todos os perfumes das alegrias vividas ali povoaram meu olfato temporal numa busca incansável de reviver os sonhos ali tão intensamente experimentados na minha infância, adolescência e maturidade, repletos de amor familial pleno, agora dentre perfumes entremeados com notas dum certo desespero resignado.

A sensação era de se viver as últimas páginas dum livro que estava no finalzinho do seu epílogo, mas cujo momento de fechá-lo ninguém saberia prever. Muito menos eu.

Restava saborear o tudo ainda vivo no coração e com muita pressa...

Como não tentar degustar até o último sumo: o cheiro de laranja da terra, os passeios na pracinha encantada, o pio acrobático dos beija-flores em todas as flores quase seculares da Bá, o viço da terra vermelha, o perfume do café recém torrado, o odor exalado ao ar pós chuvas de verão, o brilho do fogão a lenha, o sino da igreja a badalar nas madrugadas, o roncar das pombas, o grito das corujas, o canto do sabiá, dos bem-te-vi de gogós agitados de tanta poesia, o apito diuturno do trem de carga, as bolachinhas de baunilha, o pão caseiro sovado na hora, os bolinhos de chuva, os doces de suspiros coloridos da padaria, as compotas de figo e de cascas grossas de laranja, as lazanhas feitas em casa, as pizzas, os Natais, os Reveillons, as Páscoas, os aniversários, os carnavais, as quermesses juninas e julhinas, a entrada do Santo Reis na nossa porta de sonhos e agora em orações de socorro...ao Pai.

Como não degustar até o último sumo tanto amor presencial?

O mais triste: depois de noventa anos, chegara a hora da Bá deixar sua casa e as suas flores...de deixar a sua história ali plantada e regada a cada dia.

Ela não sabia, nunca soube que fecharia a porta e deixaria suas flores.

Quem aguentaria saber que em breve e compulsoriamente deixaria as suas flores?

Era difícil para mim saber que ela deixaria suas flores.

Eu não queria que ela deixasse as suas flores...

E comigo eu me perguntava: "Como um jardineiro pode deixar suas flores? Não seria como deixar sua vida, em vida?

Então me é preciso falar das flores...

Pelo presente tempo que nitidamente já a deixou sem forças físicas para viver só, só as flores lhe revitalizariam o ânimo.

Ah se eu pudesse carregar conosco aquele lindo jardim de amor...

Então, ficou decidido: ela nunca saberia que deixaria suas flores...

Sob o soar dum último apito do mesmo trem que trilhou pelos dormentes de tantos anos, vindo de lá de baixo da cidade a anunciar que chegara a hora, arrumamos as malas e prepramos nossa partida para a cidade grande.

Eu a observei o tempo todo antes de partir.

Sua rotina impecável parecia missão de Deus...

Até o último instante por ela desconhecido, o de partir da sua história pra continuar conosco, ela fez o mesmo ritual, coou o café, lavou as xícaras, limpou e cerrou o fogão a gás, puxou as cortinas e fechou a edícula de serviços.

Ligamos o carro e a aguardamos por alguns minutos.

O sino badalou dez horas da manhã e eu senti que também deixaria muito de mim por ali.

O último apito de carga soou anunciando que carregaria mais uma história dentre tantas cargas dos corações.

Vi que ainda regou com carinho cada uma das suas numerosas espécies florais viçosas, cultivadas durante a vida toda e comentou:

"acho que aguentam por algumas semanas, até eu voltar".

Assim, pensando nas flores, fechou a porta principal e o portão da varanda, nos entregou as chaves e conosco seguiu o conto pré escrito que a vida lhe impôs.

Aprendi que toda "flor mãe" precisa manter seu jardim.

Ninguém sabe, mas aqui eu posso lhes contar: eu ouvi suas flores chorarem bem baixinho...

Então, entendi que só elas já sabiam de tudo.