MEDICINA LEGAL
 

Eu me sentia como se estivesse mais pra lá do que pra cá. Só aos trancos e barrancos consegui chegar até o hospital. Mal conseguia andar, alguns amigos é que me levaram até ali, meio que me carregando. Eu não tinha a menor ideia do meu perrengue. Não era muito de ficar doente, sentir dor ou mesmo de me sentir fraco. Como diziam, eu era um toco, signifique isso o que quiser significar. Fiquei meia hora na recepção aguardando a hora de ser atendido. Tinha poucos médicos, não era possível ir a um especialista. Mas especialista em que? O negócio era clínico geral mesmo. Chegada a minha vez fui conduzido até o consultório do Dr. N. De pronto deitei-me naquelas caminhas magrelas de consultório, sem esperar ordem do médico nesse sentido. Não aguentava ficar em pé. Então o médico entrou com um tipo de plancheta na mão, olhando nela um não sei o que. Me olhou deitado com certo ar de reprovação. E me perguntou:
_ O que é que você sente?
Não entendi a pergunta, naquele momento não estava me sentido muito bem. Mas interpretei a pergunta como um boa tarde, que ele não me deu.
_ Boa tarde!
Respondi. E ele continuou me esperando. Meu Deus, a pergunta era séria. Então resolvi me autodiagnosticar.
_ Olha doutor, não estou bem. Mal ando... 
Expliquei para ele o pouco que sabia da minha situação de saúde.
_ O que o senhor acha que eu tenho?
Perguntei. Ele tinha pouco mais que minha idade, mas aquele "Dr." impunha tanta autoridade que eu não dava conta de tratá-lo de outro modo. Era "Senhor" ou então "Doutor" mesmo. Em todo caso, até aquela altura eu nem sabia o nome dele. Então olhei no crachá e descobri se tratar do Dr. N..
Ele então, e só então, perguntou meu nome, e começou a anotar o que eu dizia na já referida plancheta. Aliás a primeira pergunta nem foi o meu nome, sim se eu tinha plano de saúde. O que a custo eu já tinha explicado na recepção. Depois desse inquérito, disse meu nome. Então disse:
_ Olha eu não sei o que você tem! Não vou afirmar nada antes de ver os exames.
Eu queria era trocar de médico, queria ser atendido era pelo Dr. House, aquele médico lá de Jersey City nos EUA. Dr. N. era um fiasco em diagnóstico. Será que não podia fazer um chute e dizer não o que era, e sim o que ele achava? Mas não, ele tinha era que consultar aquela pitonisa chamada "exame", lá no seu oráculo, o laboratório. Me internaram! Internaram sem saber porque estavam me internando. Então fiz a bateria de exames, retirando fluídos do meu corpo que eram conduzidos até o oráculo. Várias horas  depois apareceu o Dr. N.
_ Os exames chegaram. Por eles não podemos arriscar nada em definitivo...
Meu Santo Doutor House, lá vem ele de novo.
_ ... acho (!!!!) que é um tipo infecção generalizada. Você continuará internado. E vamos iniciar o tratamento com soro, antibióticos e antiinlamatórios. Vamos ver no que dá.
Diagnóstico não pode arriscar, mas tratamento medicamentoso pode ministrar. Ainda bem que não deu na minha morte. E isso tudo baseado em exames. Isso foi o máximo que por ele fiquei sabendo. Depois olhando os exames, deduzi que fosse uma infecção que começou na bexiga, foi para os rins, daí para o sangue, então se esparramou por todo o território de meu corpo. Mas fui um idiota, lá pelo quinto dia de internação, quando já me sentia um pouco melhor, durante sua visita diária, resolvi arriscar mais uma pergunta:
_ Dr. N., o que o Senhor (viram o quanto fui respeitoso) acha que ocasionou isso comigo?
_ Como posso responder, os exames não são conclusivos? É falta de ética médica arriscar te dizer as causas. Pode ser qualquer coisa. Tem mais alguma pergunta?
_ (...!!!!!).
Nada mais perguntei. Talvez fosse falta de ética paciente perguntar. Já em casa, reestabelecido,  eu assistia o telejornal local lá de Catalão. Foi então que mostraram uma reportagem sobre o resgate de corpos mortos num afogamento coletivo lá no Lago Azul de três Ranchos. Entrevistaram bombeiros, polícia local, testemunhas, familiares e... o médico legista do IML de Catalão. Não é que era o Dr. N.. O Mr. N. da medicina goiana. Sondado pelo repórter ele "achava" que a causa mortis foi a ingestão excessiva de água depois do acidente com o barco que afundou, foi por isso um afogamento! Mas a resposta definitiva só seria dada num boletim após a necrópsia em Catalão, depois de uma semana. Um menino curioso que estava ao seu lado olhou-o arregalado. Se era fácil assim ele também queria ser médico. Mas o episódio de Três Ranchos muito me esclareceu. Eu fui tratado por um médico cuja especialidade era a medicina legal. Ele normalmente devia conversar era com mortos, seus pacientes realmente pacientes, uma vez que involuntários. Nesse tipo de diálogo o silêncio recíproco deve ser a tônica. Talvez se eu estivesse morto ele teria explicado melhor os males que me afligiam.