DUAS CARAS

 
 
Hoje ao acordar percebi que algo não estava certo com meu rosto. Passei-lhe a mão e ele, o rosto, me sugeriu bastante estranheza. Tive a impressão bastante táctil de que ele estava maior, mas somente num dos lados. Num lado o tato me indicava a trivialidade de uma cara sofrível com a qual já estava acostumado. Mas no outro, tudo indicava uma monstruosidade... mostruosidade no sentido dado por Charles Darwin, ou seja, eu um espécime da espécie humana aparentava um ser estranho que não guarda as características esperadas de um Homo sapiens sapiens, um outro ser, estranho até mesmo ao nosso planeta. Se bem que eu não conheço muito dos demais seres desse nosso lar terráqueo. Eu aparentava, assim tateando o meu rosto, ter duas caras! Acho que durante o sono eu me metamorfoseei num ser novo, alienígena em nosso sistema taxonômico animal. Não tateei o resto de meu corpo, com medo que ele estivesse tão assimétrico quanto meu rosto. Resolvi parar com a perquirição. Então levantei 100% de meu corpo e fui ao banheiro, lavei minhas duas caras que minhas mãos informavam. Escovei os dentes com certo descorforto, estavam ali naquele lado uma arcada dentária e gengivas que eu desconhecia. Como procuro fazer quase sempre, evitei olhar no espelho. Sai do banheiro, não resisti e olhei-me no espelho do corredor. Olhei, de um lado era aquele rosto ordinário, mas do outro era outra pessoa. Uma das caras, a direita, estava bastante diferente, mas ainda assim com um pouquinho de humanidade. Só que parecia uma caricatura facial de mim. Bem maior, desproporcional ao outro lado de mim e até mesmo em relação ao resto de meu corpo. Cheguei mais perto do espelho e apertei o ponto mais saliente daquela nova cara. Apertei com força, com a mesma mão de sempre, pois o resto de meu corpo estava o de sempre. Senti uma dor lancinante! Agora plenamente em vigília, com a cara e os dentes higienizados, descubro estarrecido o que aconteceu comigo: "M... é um maldito dente infeccionado. Preciso procurar um dentista, para ele regularizar essa cara". Pensei, acho que mais ou menos assim. Então é só isso, preciso ir ao dentista! O meu medo, é que assim, vestido provisoriamente de "Duas Caras", correr o risco de encontrar na recepção de um consultório dentário um pessoa de quem uma nossa conhecida já nos falou, o Batman de Oliveira, nomeadamente meu inimigo visceral. Como nos contos infantis, dessa história quase inócua, história de um quase equívoco, consigo tirar duas lições. Uma é que sempre esperamos que a natureza nos dê simetria, regularidade e harmonia. Somos nós os humanos que criamos os desequílíbrios. Quando as coisas não se dão assim, nós constatamos uma doença no mundo, uma disfunção que nos obriga a pensar diferente do normal. Outra lição é que não é recomendável ler Kafka antes de dormir. Existem também outras lições, mas essas deixo ao suposto leitor tentar adivinhá-las.


P.S.: Agradeço à Ene Ribeiro por ter me informado sobre o Batman de Oliveira.