O comboio da noite

Eles apanham o comboio da noite. Este, o ronceiro, que transporta mercadorias e gado. E gente cansada. Cheirando ao suor das horas extraordinárias, feitas sem encanto, nem sonho, nem paixão.

O 'rápido' saiu de manhã cedo, com o erguer do sol. Enquanto eu estudava, na larga praia, as mensagens ocultas nos ecrãs da Natureza. Saiu engalanado, ledo e lesto. Apinhado de turistas descontraídos, dos que se contentam com a paisagem fugidia para chegarem ao hotel a tempo de tomarem duche antes do jantar.

O 'foguete' partiu ao meio-dia. É um comboio-expresso. Híper, híper-veloz. Eu tinha-me refugiado na biblioteca, a estudar as mensagens de ouro dos livros sábios. É o comboio dos executivos, suas pastas prenhes de negócios e contratos. Donde o segredo e urgência são a chave do lucro e garantia de êxito. Galga a mesma distância dos outros, em metade do tempo. Suas-Excelências aproveitarão o caminho em encontros casuais de futura utilidade. Jantarão com tranquilidade aparente. E do mesmo modo adormecerão, preparando durante o sono a reunião da manhã seguinte.

Gastei o dia. Procurei nos olhares enigmáticos das pessoas com quem me cruzava, um sinal, ainda que indistinto, de um grão de luz. Mas gastei as mãos em dádivas sem retorno.

Sempre pensei que na minha praia, o sol não se pusesse nunca. Mas também aqui o sol se pôs, indiferente à minha procura. E a noite desceu sobre mim, como sobre tudo o mais!

A escuridão encontrou-me igual a um grão de areia batido pelas ondas, ou uma gota de espuma fundindo-se no ar.

Vou, pois, apanhar, eu também, o comboio da noite. O ronceiro. O mais barato. Este que transporta mercadorias e gado. E gente tão cansada, semblante fechado, carregado, inóspito.

Daquilo que sempre procurei, já não me lembro. Daquilo que sempre me inquietou, já não quero saber.

Sei apenas que já não me assombras pelas sendas da noite, pelos caminhos incógnitos da longa viagem. Sei que poderei descer em qualquer estação, olhar as estrelas do céu sem fim (as estrelas sem fim do céu), esperar sozinha pelo amanhecer.

Sei que já não me acompanharás...

... poderei talvez aspirar enfim o esplendor nascente do sol. Inspirando o oxigénio livre da montanha que desce até à praia. Poderei ir ao mercado, e comprar provisões. Poderei esperar novamente a noite, e retomar a viagem.

Retomar a viagem, quantas vezes forem precisas. Pelas sendas esquivas da noite? E há outras? Caminhos incógnitos da longa viagem.

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© Myriam Jubilot de Carvalho

16 de Junho de 1991

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NOTA:

Hoje, dia 24 de Fevereiro de 2022, sou surpreendida por um e-mail

do meu Amigo - Ronaldo Cagiano, escritor, ensaísta e poeta brasileiro

a residir em Portugal,

que me fez a maravilhosa surpresa de publicar este conto no jornal brasileiro:

Jornal da ANE

Ano XIV, Nº 111, fevereiro/março - 2022,

na página 2.

Fiz anos no passado dia 21.

Esta foi sem dúvida uma maravilhosa prenda de anos!

Já agradeci, como é óbvio, nem tenho palavras com que agradecer...

Dizer - obrigada - ...é pouco... Foi um gesto muito, muito bonito!

...que me deixou extremamente comovida.

Mais uma vez, obrigada, Eltânia e Ronaldo

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Myriam Jubilot de Carvalho
Enviado por Myriam Jubilot de Carvalho em 06/06/2015
Reeditado em 22/04/2022
Código do texto: T5268309
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