Tabuleiro do Amor

Fortaleza, Ceará, idos de fevereiro de 1973, o ano do milagre, o petróleo jorrando esperança ao povo, dias melhores hão de vir, sempre vem, sempre virão. Dias mais irrigados hão de molhar esta terra. A polícia oficial de parelha com o exército coibindo abusos das marchinhas carnavalescas que salpicam, sepultam sonhos, riem dos próprios descasos das improbabilidades. Tudo é proibido, nada escapa à ordem, os beijos são envelopados e os amores amoram sob a mesa de jantar.

“Menina do anel de lua e estrela

Raios de sol no céu da cidade

Brilho da lua oh oh oh, noite é bem tarde

Penso em você, fico com saudade

Manhã chegando

Luzes morrendo, nesse espelho

Que é nossa cidade

Quem é você, oh oh oh qual o seu nome

Conta pra mim, diz como eu te encontro

Mas deixa o destino, deixe ao acaso

Quem sabe eu te encontro

De noite no Baixo

Brilho da lua oh oh oh, noite é bem tarde

Penso em você, fico com saudade”

Quando o espírito da beleza achou por bem configurá-la uma das moças mais belas e graciosas da capital, senão a mais bela e graciosa, o fez num capricho estupendo. Não tinha mulher despercebida em qualquer idade que não a invejasse, rapazotes que não se encantavam, senhores que não desavergonhavam os pensamentos. Conta-se que a beleza física arrematava-se com uma singularidade de alma extraordinária, tamanhas eram a bondade e candura da menina do anel. Dir-se-ia até que o seu destino seria o celibato, não fosse um pintalegrete de boa garba que por ereta diversão desfraldara-lhe a bandeira única.

Como o corpo procede do corpo e o espírito procede do espírito os sentimentos seguiram imaculados. A menina do anel ganhava o seu sustento nas noites de festas, mascateando doces e salgados caseiros, de mãinha, num tabuleiro assaz prendado. De orla em orla tudo se vendia, tudo se fazia. Setenta por cento da venda era simpatia, o restante pelos produtos. Isto era o normal de sua vida. Até que um acontecimento veio por mudar tudo, ou quase tudo, praticamente tudo. Numa certa manhã a menina do anel vendeu todos os doces e salgados a um cliente, único. Isto foi o máximo, apesar de incompreendido, pois eram uns cinquenta doces e quatro dúzias de salgados. Eis que dois dias se passaram até mãinha refazer o estoque, quando na mesma orla, dois dias depois, novamente o mesmo rapaz comprou tudo que havia no tabuleiro. Um tanto chocada, mas sem palavras para dizer, a menina do anel encerrou o expediente antes que o sol desse um quarto de volta na manhã. Este ciclo se repetiu por duas semanas, com intervalos de dois dias para reposição dos produtos no tabuleiro. A mesma orla, a mesma menina, o mesmo comprador de centenas, já indo a milhares de doces e salgados. Conta-se que na periferia mais pobre de Fortaleza houve um mês em que todos os dias eram de São Cosme e São Damião. As crianças ganharam tantos doces e salgados, que foi só algazarra. A oferta era de um libanês ainda jovem, abastado em seu país, que veio a turismo de dias, mas encantou-se tão amorosamente por uma menina do anel, que a estada durou não menos que toda uma gestação. Ao comprar o tabuleiro todo por tantas vezes ele não queria mais que poupá-la do extenuante trabalho de um dia sob tamanhoso sol. Na conversa do amor não há línguas sobrepostas, casam-se simplicidade e finess, falam-se cearês e libanês num conjugado de sinais sutis in extremis. E tudo palpita, o amor desaguenta, tateia, beija, sorve, acarinha e penetra. Despenetra, tateia, desaguenta, beija, sorve, acarinha e penetra. O fluxo da vida. Menina do anel pariu uma criança saudável, em São Paulo, cidade com mais recursos hospitalares no início dos anos 70. Conta-se que a gestação sofreu sérias complicações. Em terras libanesas aportou um homem duplo, com alma doída, com o maior amor da sua vida enfiado no peito, um pensamento, uma saudade, uma culpa, sentimentos embolados, fixados em si para sempre. Menina do anel partiu deste orbi. A criança foi entregue aos órgãos competentes e posteriormente a seus pais de fato, direito e espírito. Conta-se que é feliz, mas não sabe.

Eduardo Marçal Silva
Enviado por Eduardo Marçal Silva em 04/06/2015
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