815-A RAPOSA TEM SETE MANHAS-Drama familiar

Manhã clara, céu limpo, o mundo lavado pela chuva da madrugada. Joviano acordou bem disposto, esperou a mulher Rosália rezar a oração da manhã e levantaram-se juntos para o preparo do café.

Enquanto ela passava o café, ele foi à padaria que ficava logo ali, no meio da próxima quadra. Antes mesmo de passar defronte à casa do sogro, seu Manoel, ouviu a voz da sogra, dona Raimunda, sempre gritando com o marido.

Seguiu em frente. Não seria a primeira nem a última vez que ouviria as intempéries da sogra, discutindo com o marido. Discutindo, não, era uma bronca de mão única, pois o sogro nunca respondia. Aceitava mudo o destempero da mulher. Todo santo dia.

Seu Manoel era um português calmo, tranqüilo, que aguentava resignado as reclamações constantes da esposa. De manhã, antes de sair para o trabalho, e à noite, quando chegava, de volta de um exaustivo dia.

Era encarregado de almoxarifado de um grande depósito de mercadorias e trabalhava prá valer.

— Gosto de trabalhar, confidenciou ao genro, seu único amigo e ouvinte. — Mas a Mundinha é duro de aguentar. Ora pois, não tem um dia sem reclamações.

Quando casou com Margarida, a única filha de Manuel e Raimunda, Juvenal concordou em morar próximo à casa dos sogros.

— Mamãe não pode passar o dia inteiro sozinha. Vai ficar muito solitária, disse.

E alugou uma casinha ao lado da casa do sogro e da sogra.

Ao voltar da padaria, seu Manoel já tinha saído, pedalando sua bicicleta. Entrou para dizer um “bom dia” à sogra. Ela o recebeu já com a corda toda:

— Ta vendo? O Manuel está cada vez mais sonso! Demora a se aprontar e acabou se esquecendo a marmita.

— Pode deixar, dona Mundinha, que na hora do almoço, eu levo a marmita prá ele.

— Eu devia deixar ele sem o almoço, prá ele aprender...!

Na hora do almoço, Juvenal pegou a marmita e levou para o sogro. O depósito de mercadorias ficava do outro lado da cidade, por isso o velho levava a marmita, pois mesmo usando a bicicleta, não tinha tempo para almoçar em casa.

Cuidar da bicicleta era o único lazer do seu Manoel. Mantinha lubrificada, limpa e funcionando muito bem. Nos fins de semana costumava dar longos passeios, pedalando pelas estradas que levavam às fazendas e sítios, ou pela rodovia asfaltada, chegando até as cidades vizinhas, distantes cerca de vinte ou trinta quilômetros de sua casa. Era sua distração e sua fuga do lar, da mulher que não descansava um minuto de desancá-lo. E de tanto pedalar, percorria muitos quilômetros com facilidade.

Joviano encontrou o sogro ainda no trabalho.

— Trouxe o almoço pro senhor, seu Manoel.

— Ora pois, quanta gentileza. Estava cá a pensar como iria forrar o estômago, pois aqui por perto nada tem, nem mesmo um bar.

Juvenal entregou a sacola de plástico com a marmita e preparou-se para sair.

— Olha, meu rapaz, se tens tempo, vamos conversar.

Juvenal tinha tempo. Com o carro, chegaria rapidamente ao trabalho. Sentaram-se os dois num banco ao lado do escritório.

— Hoje Raimunda passou da conta. Saí tão nervoso que até me esqueci do almoço.

Juvenal escutou calado. Sabia que o sogro queria desabafar.

Entre as garfadas, foi considerando sua vida para o genro, como que falando para si mesmo.

— Minha mulher é pior do que uma raposa.

— Colmo assim, seu Manuel?

— A raposa tem sete manhas. A Mundinha é pior, tem sete vezes as sete manhas de uma raposa.

Juvenal nada falou. O sogro continuou:

— É impossível conversar com ela, tentar explicar certas coisas, ela parece que não tem ouvidos. Sempre pensa que está com a razão. E sempre aos gritos.

— É. La de casa dá pra escutar...

— Já acorda alterada, e só pára quando dorme.

Juvenal notou o tom triste e tenso na voz do sogro. É como se estivesse prá estourar.

E Manoel continuou a falar da mulher, até rapar o fundo da marmita.

Terminada a refeição, levantou-se e deu o monólogo por encerrado. Juvenal também se levantou, despediu-se do sogro, entrou no carro, que colocou em movimento e se dirigiu para o centro da cidade, ao escritório onde trabalhava.

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À noite, quando chegou em casa, antes mesmo de colocar o carro na garagem, ouviu a voz alterada da sogra.

—Que aconteceu desta vez? — perguntou à Rosália.

—Mamãe está aflita porque o papai ainda não chegou do trabalho.

Foram os dois até a casa da sogra. Encontraram-na mais agitada do que nunca.

— Já são quase oito e o disgraçado não aparece. Vai ver, ta bebendo nalgum botequim por aí.

Rosália arrastou o marido para um canto e sussurrou:

— Papai nunca chegou em casa fora de hora. Não é homem de ir prá botequim depois do serviço.

— Então...?

— É melhor você ir lá no deposito e ver se ele ainda está trabalhando.

— Ta bom. Vou lá ver.

Tirou o carro da garagem e foi até o local de trabalho do sogro.

Ao chegar encontrou tudo fechado, escuro. Apenas na guarita do guarda, onde brilhava uma luz fraca, dava sinal de vida. Aproximou-se e perguntou ao vigilante sobre o sogro.

— Seu Manoel? Não está aqui, não senhor. Saiu na hora de costume.Às cinco horas.

— Ainda não chegou em casa.

— Eu conheço bem ele, vi quando ele saiu. Não vi nada de estranho.

Juvenal refez o caminho de volta, passando por onde o sogro passava todas as tardes, no retorno ao lar. Nada viu que pudesse lhe chamar a atenção.

Foi uma noite de cão, aquela. Juvenal livrou-se das maldições e impropérios da sogra, percorrendo até alta madrugada, a cidade, em busca do sogro. Fez a ocorrência na delegacia de polícia, procurou no hospital, e depois, os bares que ainda estavam abertos. Foi até na rua das putas, a ver se seu Manoel não havia destrambelhado de vez.

Nada. Nenhum sinal do sogro.

A cada vez que passava em casa, nas suas idas e vindas, deparava com a sogra cada vez mais irritada, mais histérica, amaldiçoando o marido. Sua esposa, Rosália, solidária com a mãe, aguentava a situação de duplo sofrimento: não saber o paradeiro do pai e ouvir os queixumes desbragados da mãe.

Os vizinhos apareciam para saber o que havia acontecido ou se tinham encontrado seu Manoel. Contudo, não permaneciam, pois dona Mundinha estava insuportável.

Passaram a noite em claro, sem saber o que fazer. O dia amanheceu e o desespero recrudesceu. Muitas hipóteses, as mais absurdas, surgiram.

— Meu Deus! Será que ele suicidou?

Ou

— Minha Nossa Senhora de Fátima! Será que foi atropelado e está nalguma valeta, por aí...?

Juvenal, quase morto de sono, foi para o escritório. Antes de sair, disse:

— A polícia ta procurando, acho que fiz o que tinha de fazer. Agora, é esperar.

— Esperar o que? Que o disgraçado apareça? — Dona Raimunda não tinha mesmo papas na língua.

Não tiveram que esperar muito, não.

Pelas nove horas, Juvenal foi avisado pela polícia: haviam encontrado o corpo de um ciclista, atropelado na rodovia, próximo a cidade de Pedra Verde, distante cerca de trezentos quilômetros.

O atropelamento fora de madrugada. Ao lado do corpo, a bicicleta quebrada. De quem o atropelara, nem sinal.

Manuel tentara escapar da raposa manhosa. Encontrou na morte a liberdade que ansiara em vida.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 3 de dezembro de 2013.

Conto # 815 da Série 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 01/06/2015
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