A redação

- Por favor, atenção. Vocês receberam quatro folhas de papel; podem usar as três folhas em branco para o rascunho, mas a redação deverá ser entregue a caneta e em letra legível apenas na folha pautada com o timbre do Departamento. Terão duas horas para finalizar a prova.

Caso terminem antes, só poderão entrega-la após decorrida uma hora. Devem estar todos cientes que a redação é eliminatória, portanto peço que deem o seu melhor. O tema é: DESEJO. Podem começar e boa sorte a todos.

Assim que a mulher terminou de falar, um farfalhar de papéis, como uma chuva que caísse de repente, foi ouvido na classe. Reinaldo sorria sutilmente: redação era o seu forte. O tema suscitava nele muitas interpretações. Com a caneta Bic nos lábios, já mordiscada de outros concursos, fechou os olhos e, após alguns minutos, começou a escrever.

“Discutido entre os homens há séculos, o desejo foi pensado de diversas maneiras por filósofos e repensado por psicólogos e profissionais da comunicação. O desejo move o homem, mas paradoxalmente é necessário renunciar a ele para trabalhar e viver em sociedade. O desejo pauta o consumo, a publicidade, a...”

- Muito óbvio – pensou Reinaldo, estancando de repente. – Metade do povo aqui vai falar sobre o que é o desejo, como se fôssemos psicólogos... não, preciso ser mais contundente, preciso que o desejo tenha força, abale as estruturas desses acadêmicos.

Fez um grande X sobre as linhas já escritas, matutou um tempo e recomeçou:

“Como um cigarro aceso, cuja brasa quase imperceptível (não fosse pela fumaça) diminui aos poucos, sutilmente - porém de forma insistente - o papel branco que envolve o fumo, assim me consome esse desejo de ti, de teus braços igualmente brancos que envolvem meu corpo; este corpo já moído, como as folhas do tabaco, apenas pela tua presença, pronto como elas para se incendiar pelo calor dos teus beijos que...”

Parou com a caneta no ar.

- Ai, não! Vai acabar virando um conto erótico. Abalar as estruturas acadêmicas, ok, mas por outro viés, que afinal estou prestando concurso para uma vaga de emprego público e não de escritor de revista feminina!

Pôs a mão esquerda na cabeça, enquanto com a direita rabiscava vagarosamente as linhas anteriormente rascunhadas. Um tempo de silêncio interior e teve outra ideia:

“Todos temos um desejo. O meu é simples, porém, antes fosse multiplicado pelos meus milhões de irmãos brasileiros: desejo fazer a minha parte para que nosso país recupere sua nobreza, a pujança estampada em verde e amarelo no nosso estandarte que brilha, altivo e onipresente, sobre as nações da América, este continen...”

Nem terminou a palavra: ao invés de emendar o N com a próxima letra, veio trazendo a caneta para o lado esquerdo, fazendo espirais sobre o parágrafo recém escrito - que virou uma maçaroca de tinta azul.

- Me conheço... Daí pra política vai um pulo! Caramba, é um cargo público, melhor deixar esse tema pra outra ocasião. Não, tem que ser algo criativo, alegre, que dê vontade de continuar a ler, que desperte o interesse dos caras...

Pensou, pensou e recomeçou.

“O homem que toca a campainha da casa de Daisy tem uma pasta preta na mão esquerda e com a direita empunha um maço de flores. Seu terno impecável, sem esquecer o cravo na lapela, se ilumina sob a lâmpada do terraço. Daisy abre a porta, seus olhos se arregalam. ‘Não pode ser’, ela murmura, perplexa. E continua: ‘O que deseja agora? ”

Reinaldo leu e releu o parágrafo; sorriu e continuou, convicto de que estava no caminho certo. Escrevia num ritmo frenético, quase sem se corrigir e praticamente sem parar. O texto fluía fácil, como se já estivesse pronto dentro dele. Terminou praticamente junto com as folhas de rascunho.

Voltou a ler o texto todo, prestando atenção à gramática, corrigindo pequenos deslizes de concordância e acertando as vírgulas; admirou a própria imaginação e pensou consigo mesmo:

- Tá no papo!

Pegou a folha timbrada e, com sua melhor caligrafia, começou:

“O homem que toca a campainha...”

E a campainha tocou, indicando o fim da prova de redação.

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Este texto faz parte do Exercício Criativo "Nadou, Nadou e Morreu na Praia"

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