812-JOGO DE BAFO E MARCAS DE CIGARRO-Memórias do Autor

Durante as décadas de 1930 até 1960, fumar era algo elegante para os homens, enquanto que as mulheres não haviam adquirido emancipação o suficiente para praticar tal vício.

Os filmes eram os grandes disseminadores da elegância de fumar. Rick Blaine, o personagem do filme “Casablanca” aparecia entre densas névoas de fumaça de cigarro, que Humprey Bogart acendia um após o outro, soltando baforadas até mesmo no rosto de Ingrid Bergman, sua grande paixão. Os vilões mastigavam charutos e os mocinhos dos filmes caubóis mantinham no canto da boca um cigarro que jamais se consumia.

O BAFO, jogo dos garotos de minha meninice, não registrado como tal nos dicionários da língua portuguesa (certamente por ser um termo da língua brasileira) tinha tudo a ver com o consumo de cigarro. Para entrar na roda de jogadores, a gente devia ter pelo menos uma marca, ou seja, uma face do maço de cigarros, rasgadas dos maços de papel. Cortava-se ou rasgava-se o maço descartado e obtinha duas marcas de uns dez centímetros de diâmetro. Era preciso que o logotipo, a marca do cigarro, ficasse bem aparente e não valia cortar as letras para o papel ficar menor e portanto, mais fácil de ser virada

O jogo começava com dois ou mais jogadores, cada qual colocando no chão (de preferência chão cimentado) sua marca, com a estampa virada para baixo. Tirava-se o par-ou-ímpar para ver quem começava. Com a mão em concha, a gente batia sobre as marcas, para vira-las com as estampas para cima. Quanto mais rápida fosse a batida, mais as marcas viravam a face oculta para cima. O jogador rapava, isto é, ganhava e retirava as marcas que conseguisse virar.

Quanto mais parceiros, melhor, pois num monte com cinco, seis marcas, a possibilidade de virar era maior.

Não pensem que era um jogo fácil, não. Não se podia usar artifícios como umedecer a palma da mão com saliva, ou bater com a mão espalmada, o que podia facilitar a viração das marcas.

Parceiros com as mãos maiores tinham mais chance de virar mais marcas, mas nem sempre isto acontecia. Miltinho, o Mosquitinho Elétrico, franzino, miúdo e mãos minúsculas, era um dos mais hábeis e tinha uma coleção de mais de cem marcas.

Isto não quer dizer que havia tantas marcas de cigarro à venda. Muitas marcas, as mais fumadas, eram repetidas. E aqueles papeizinhos de tanto passar de mão em mão iam ficando sujos e com as cores alteradas.

Os garotos encontravam os maços de cigarros jogados nas sarjetas e cantos de portas, por toda a parte. Tio Armando, que morava em nossa casa, era um fumante inveterado. Era ele quem fornecia os maços vazios para que eu e meu irmão Arthur tivéssemos marcas para jogar bafo.

Havia então dois tipos de maços cigarros: o “clássico”, ou “ovais” em caixas de papelão macio, não serviam, pois o papelão era pesado demais para o jogo. Já as carteirinhaa de cigarros tipo “americano”, de papel, eram apropriadas para o jogo

Os cigarros em caixa de papelão mais fumados eram Fulgor, Liberty Ovais, Clássicos. Este último, se o maço não servia para o bafo, era muito disputado por outros garotos, pois traziam em cada maço uma pequena fotografia de uns cinco por dez centímetros, em sépia, de artistas de filmes americanos. Que, por sua vez, era objeto de trocas entre os que gostavam de colecionar tais fotos.

As marcas de cigarros vendidos em maços “tipo americano” eram: Neuza (maço verde: simples, maço amarelo: com ponteira), Liberty. Saratoga, Lancaster, Luiz XV, Lincoln (maço verde, simples; maço marrom, com “ponteira”) Continental, Hollywood, Castelões. Esta marca era de uma fabrica na Bahia, enquanto que as demais eram fabricadas pela Cia. Souza Cruz.

Quando o bando de garotos estava jogando, agachado ao redor do monte, podia-se ouvir à distância os gritinhos:

— Tá roubando!

— Assim não vale!

— Agora não é sua vez!

— Tira a mão que vou bater!

Apesar da exaltação, nossa linguagem era educada e não havia palavrões nem ressentimentos pela perda de uma ou muitas marcas numa rodada de muitos parceiros.

Nem foi por lidar com maços de cigarro que os garotos (pelo menos os da turma da minha rua) adquiriram o hábito de fumar.

Era um tempo, como escrevi no início, em que fumar era elegante e não constituía paranóia de Ministro da Saúde, que mandou inserir numa das faces dos maços imagens horríveis de doenças e mutilações imputadas ao uso do cigarro.

Se houvesse esse tipo de coisa em nossa meninice, o jogo de bafo não teria sido tão bom nem faria parte de minhas memórias.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 14 de novembro de 2013

Conto # 812 da Série 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 28/05/2015
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